Leituras #22: O Diário de Guantánamo, de Mohamedou Ould Slahi

Autor: Mohamedou Ould Slahi
Editora: Companhia das Letras, 2015
Tradução: Donald M. Garschagen e Paulo Geiger
Páginas: 459

Se é preciso haver uma calamidade como a guerra para nos despertar e transformar, bom, que seja. (…) vamos ver se seremos capazes de criar uma democracia real no lugar da falsa que, afinal, fomos incitados a defender; vamos ver se poderemos ser justos e honestos com a nossa própria espécie, sem falar do inimigo, que, sem dúvida, venceremos.
Henry Miller

Henry Miller escreveu a frase acima em 1945, no livro Pesadelo Refrigerado. Pode parecer estranho começar a resenha de um livro falando de outro, mas creio que nada explicita mais a relação dos Estados Unidos com a guerra do que uma citação que, mesmo sendo de 70 atrás, parece que foi escrita hoje. A guerra está no cerne da cultura norte americana, em seus filmes, suas histórias, suas vidas. Defender o território nacional, zelar pela segurança dos cidadãos de um país, garantir a manutenção do mundo livre. Duas guerras mundiais, guerra civil, guerras forjadas em outros países em nome do Bem, da Liberdade, da Democracia. Guerra contra o Terror. Mas quem é o Terror? Mohamedou Ould Slahi, em O Diário de Guantánamo, nos mostra sua cara, seu corpo e sua vida.

É em Guantánamo que estão os terroristas. Depois do 11 de setembro, os Estados Unidos se debruçaram em uma missão na Guerra contra o Terror, visando o combate a todo tipo de organização/indivíduo terrorista. Nesta empreitada, Guantánamo tem papel fundamental: na prisão militar, não há regras, não há direitos, não há pessoa: em nome do Bem e contra o Mal, o Estado americano pode raptar e torturar qualquer terrorista-em-potencial, sem julgamento, sem acusação e sem provas.

É em Guantánamo que está Mohamedou Ould Slahi. Nascido na Mauritânia, Mohamedou foi sequestrado de dentro de seu próprio país, com aval de seu governo em um acordo sigiloso feito com os Estados Unidos. A razão? Terrorismo. Se Mohamedou cometeu ou não algum ato terrorista, é irrelevante para aqueles que, desde 2002, o mantêm preso sem acusação formal na baía cubana. Ser muçulmano é seu principal crime, além de conhecer algumas pessoas e ter, no início dos anos 90, quando os dois inimigos tinham um propósito comum, lutado com a Al-Qaeda e os Estados Unidos contra o comunismo. Sob as acusações de ter tido participação no Complô do Milênio e, depois, numa tentativa desesperada de encontrar qualquer informação que o relacionasse a qualquer crime, no atentado de 11 de Setembro, Mohamedou foi sequestrado, agredido, violentado, torturado, abusado sexualmente, privado de sono e comida, difamado, ameaçado, xingado e teve sua dignidade destruída por ordem dos Estados Unidos. Desde a primeira vez em que foi preso (antes de ir parar em Guantánamo, foi preso na Mauritânia, na Jordânia e no Afeganistão, sempre por ordem dos EUA), ele garantiu não ter nenhum tipo de envolvimento com nenhuma atividade terrorista e nunca, até hoje, foi encontrada nenhuma prova ou indício de participação de Mohamedou no terrorismo.

O livro O Diário de Guantánamo foi escrito de dentro da prisão americana. O manuscrito original, com 466 páginas que narravam a tortuosa experiência de Mohamedou na prisão, foi classificado como “confidencial” por representar um perigo à segurança nacional. Porém, com a Lei da Liberdade de Informação, os Estados Unidos foram obrigados a divulgar informações sobre Guantánamo e, assim, foi possível que seu desejo de publicar um livro contando sua história se tornasse realidade. Entretanto, antes de chegar ao editor Larry Siems (que fez o mais primoroso trabalho de edição já visto, tendo passado 5 anos debruçado sobre o caso de Mohamedou e todos os documentos públicos que existem sobre ele), o manuscrito passou por avaliação do governo dos Estados Unidos, que censurou, com mais de 2600 tarjas pretas, seu conteúdo.

                                                                    

Cada tarja surge aos olhos como lembrete constante do apagamento, do esquecimento e da invisibilidade de Mohamedou. Ele, que teve seu corpo e sua vida tarjados pela tortura e pela injustiça, reaparece nesta obra espetacular ainda tarjado, marcado, apagado. Silenciado, em suma – como tem sido há 13 anos, jogado em uma terra de ninguém e privado de sua liberdade sem ter cometido nenhum crime. A cada tarja, um nó na garganta. A censura só aumenta a indignação e o desespero de entrar em contato com esta história de terror.

E no meio dessa assustadora história real, a lucidez de Mohamedou é impressionante. Ele poderia fazer de sua história um drama sangrento – pois o é. Ele poderia descrever como seus carcereiros e interrogadores são pessoas horrorosas que só o fazem mal – pois o fazem. Ele prefere, porém, não exagerar seus relatos, pular descrições detalhadas de suas torturas e humanizar seus algozes; nada é tão simples como parece, nem mesmo em uma situação extrema que ultrapassa qualquer limite de bom senso, justiça e direito. As pessoas são complexas, as contingências são complexas e ele, durante toda sua narrativa, toma o cuidado para deixar claro que está apenas narrando o que viveu, sentiu, sofreu e pensou. Não procura falar uma Verdade sobre os interrogadores, os carcereiros, os Estados Unidos, sobre Guantánamo. Quer apenas ter voz: quer clarear algumas das escuras tarjas que, mais que no livro, impuseram sobre sua existência.

Related posts

Adelaide Ivánova lança Asma, um livro de poesia que se inspirou em grandes nomes, de Homero a Virginia Woolf, de Chico Science a Ferreira Gullar

“Sobre desistir”: palavra proibida é tema livro do psicanalista Adam Phillips

“O que não tem nome” aborda a busca de uma mãe para dar sentido ao que não pode ser nomeado