“Mil Placebos”, de Matheus Borges, e as crises da contemporaneidade

Publicado pela Uboro Lopes Matheus Borges escreve obra “Mil Placebos”,livro arrojado sobre as crises da contemporaneidade

Publicado em 2022 pela editora Uboro Lopes, e vencedor do Prêmio Odisseia Narrativa Longa de Ficção Científica 2023, o romance de estreia do escritor gaúcho Matheus Borges nos traz uma narrativa introspectiva e voraz em que o protagonista, um jovem solitário, encontra a maior conexão de sua vida através de fóruns da internet. Utilizando um pseudônimo, ele conhece uma garota americana chamada Jenifer, com quem passa a trocar mensagens diariamente.

A relação virtual com Jenifer se torna o ponto alto de seus dias, em que passa sozinho em seu quarto, enquanto seus pais enfrentam crises próprias. Até que ele recebe a terrível notícia de que Jenifer cometera suicídio, através de uma comunicação da mãe da garota, que ficara sabendo da amizade virtual dos dois.

A perda da amiga o transtorna a ponto de levá-lo a entrar em depressão, o que faz com que seus pais se preocupem, o levando a especialistas que receitam antidepressivos. Ao fim da adolescência, o nosso protagonista passa tempos em uma universidade, e divide um apartamento com um colega, com o qual tem uma relação apenas civilizada, sem grandes conexões. Ele segue fechado em seu mundo próprio, e acompanhamos no decorrer dos capítulos como ele se torna obcecado com conspirações e misteriosos assassinatos (logo no primeiro capítulo ele anuncia que matara um homem, e essas conspirações terão envolvimento dele em algum ponto).

Sem motivação para os estudos, acaba por largar a faculdade e segue uma jornada perigosa, envolvido com contatos encontrados nos fóruns obcuros da deepweb, até que se depara com um vídeo que muda o seu destino. Não revelarei aqui o conteúdo do vídeo para não trazer spoilers, mas apenas adianto que é uma revelação chocante.

Outro ponto forte do livro se dá quando o protagonista conhece o pai do seu colega de apartamento, um médico renomado que pesquisa uma forma natural de antidepressivos. Notando que o jovem possui crises próprias após uma conversa sobre ele ter largado a faculdade e não se encontrar no mundo, o homem lhe oferece algumas das pílulas, em fase de testes, nas quais está trabalhando para lançar no mercado.

Leia mais aqui: “Mil Placebos”: romance investigativo discute os impactos psíquicos da tecnologia

Nos dias que seguem o encontro, ele começa a tomar os medicamentos, relatando ao médico efeitos colaterais e sempre na expectativa de uma melhora, o que condiz bastante com a experiência do uso de antidepressivos, com a diferença de que estes são medicamentos experimentais (seriam placebos? ou seria o título da obra “Mil placebos” uma crítica à crença de que os remédios funcionam? Fica a reflexão).

Em geral a obra trata de forma minuciosa das relações distantes do mundo contemporâneo, vivido de forma digital, e discute os conceito da realidade, da verdade, quando o foco no registro da vida e não no viver em si parece ter ganho mais importância, como por exemplo no trecho abaixo:

“Quanto mais registramos, mais perdidos nos encontramos em nossos próprios registros. […] O armazenamento de tudo fará com que o mito se perca no meio do caminho. E o que é a civilização sem os seus mitos? Com o fim do mito, também chegará ao fim a perseguição do impossível.” – p.61-62

O que lembra bastante do conceito de simulacro trabalhado pelo filósofo francês Jean Baudrillard, em que ele basicamente discute a transformação do real em representações sem um significado concreto, uma cópia pela cópia, uma construção vazia que tenta reproduzir o que já não mais é real. Até mesmo porque o próprio protagonista se questiona sobre os significados do real em si, bem como a distância entre o que pensamos e o que conseguimos representar externamente:

“a criatura humana vive presa num abismo entre o pensamento e a expressão” – 146

O romance também desperta diversas reflexões sobre a depressão ser algo tão presente nos dias atuais, o uso de medicamentos antidepressivos e a tecnologia como escape da realidade e criação de uma nova realidade através dela, o que inclusive dá origem a questionamentos sobre os eventos narrados: seria Jenifer real? Se os jovens se conhecem em um fórum, primeiramente usando pseudônimos, e então partem para conversas diretas, o que impediria de uma pessoa inventar a história de Jenifer, que só se apresenta com fotos, nunca fazendo chamadas de som ou vídeo? O que é real na trama ou é passado como real para o protagonista? Pois ele mesmo se questiona sobre a verdade e sobre quem ele mesmo se tornou além de um amontoado de informações que recebe continuamente nos seus feeds online, de acordo com o trecho abaixo citado:

“É possível que, em algum momento, a carga de informações acumuladas seja grande o pastante a ponto de substituir as informações essenciais que constituem o que sou. . Entretanto, é difícil dizer o que sou e por quê. Um receptáculo de experiências e dados, de anseios e frustações. A singularidade humana, em toda a sua banalidade.” – p. 10

A obra traz grandes reflexões sobre os limites do real e do irreal, do quão longe a tecnologia e a medicina podem afetar a vida. Nas páginas finais, ao estar prestes a fazer uma descoberta inesperada e encerrando as pílulas recebidas do médico, temos o seguinte trecho, que acaba por resumir bem em poucas palavras o teor não só desta obra, mas de certa forma, da ficção em geral, e da tecnologia que altera a realidade:

“A invenção era capaz de manipular a realidade” – p. 187

Enfim, fica a recomendação da leitura e a pergunta aqueles que já leram a obra? O que realmente aconteceu com Jenifer? Ela era real? Um fake? Quem ainda não leu, leia e depois venha aqui comentar a sua opinião!

Saiba mais aqui:
https://www.instagram.com/uborolopes/

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