“Colcha de Retalhos”, de Bruno Resende: transmutando experiências em literatura

Em “Colcha de Retalhos”, Bruno Resende modifica e transforma a experiência do real pela imaginada invenção da literatura

A fronteira entre memória e ficção nem sempre é clara e, na verdade, as duas estão muito mais próximas do que imaginamos, pois ambas são construções, ambas são o resultado de pessoas reescrevendo a realidade, inventando de certa forma um mundo. E quanto mais embaçado o limite entre elas, mais intrigado fica o leitor para saber o quanto de autobiografia há no que se lê.

Nesta reunião de textos do jornalista e escritor paulistano Bruno Resende tal pergunta é uma constante, mas jamais podemos perder de vista a advertência com a qual topamos logo de cara: “Em que pesem os acontecimentos narrados, o autor avisa que suas experiências foram transmutadas em literatura, valendo-se da livre interpretação dos fatos, sem utilizar nomes reais.” Transmutar, verbo que carrega a ação de Modificar, Transformar, ou seja, tudo recebe nova forma e aqui a narrativa pessoal ganha toques ficcionais.

Divido em duas partes, o livro não promete um fio condutor narrativo ou temporal através do qual os textos possam ser conectados, mas o leitor atento perceberá que a Parte 1, intitulada “Serendipidade”, abarca um momento mais jovem e até idealista: “Para evitar a gritaria e, no limite, se manter no cargo, os jornalistas tinham que conduzir as matérias de modo a fazê-las caber dentro dos ditames da diretoria, e não seguir o caminho natural de uma apuração, que é o caminho da descoberta e revelação dos fatos.”, mostra-se indignado em “Não era o ideal, mas éramos felizes”.

Há, além disso, uma marca ainda maior de conexão entre as narrativas: a boemia e as relações interpessoais, principalmente com mulheres. “Sou dado a todos os vícios. Em duas horas de estudo, fumei dois baseados, bebi uma cerveja, comi um saco de salgadinhos e 100 gramas de chocolate.”, assume em “De bona en França”.

“A fotógrafa ficou surpresa com minha naturalidade, elas não devem ter esse tipo de situação no seu país de origem. Levantei cortesmente e pus o colar na moça mais bonita, para indicar qual delas eu preferia, machista como um huno”, diz em “Nas ladeiras do Pelourinho”, texto de abertura da coletânea.

É também em “Serendipidade”, conceito que engloba a ideia de esbarrar na felicidade por acaso enquanto busca-se outra coisa, que o autor trás um diário de bordo feito aos trancos e barrancos durante um mochilão pela Europa. No texto intitulado “Caderno de Viagem”, temos o clássico pinga-pinga entre as principais capitais europeias, viagens de trem, noites mal dormidas, encontros, desencontros, visitas a museus, bares e bocas. “Paris é uma cidade séria, elegante e os cidadãos parecem se importar muito pouco com os estrangeiros. As parisienses são extremamente charmosas e todos têm narizes empinados.”, adiciona a impressão da cidade-luz e de seus habitantes.

Leia também: “Amores, Marias, Marés”: paixão, ancestralidade e fatos históricos na  Maranhão de 1960

Ainda falando sobre viagens e deslocamento, o autor apresenta textos que se passam em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco, e entra até na batalha pelo Carnaval mais popular do Brasil, “Olinda preserva o espírito popular perdido nos carnavais baiano e carioca. E conserva os preços baixos: cervejas custam dois reais.”, assim como ingressa na polêmica Arraial d’Ajuda x Caraíva: “Quando visitamos a outra praia, no sábado, estava bombando. Até mais cheia do que o razoável, eu diria, e de gente bem-vestida – na pior análise, uma peruada que só, sobretudo após o meio-dia, quando um grupo se aproximou do nosso cantinho na areia e acabamos dando o fora dali.”.

Há, nessa primeira parte, uma confluência de línguas, lugares e propósitos que assim como as ladeiras do Pelourinho, de Santa Tereza, Olinda ou as colinas de Chalosse, na França, envereda por caminhos muitas vezes desconhecidos, mas que sempre chegam ao destino, mesmo que esse destino não seja de todo conhecido.

Fragmentos de um homem que amadurece

Na Parte 2, chamada “Fragmentos”, o jovem universitário, recém-formado, dá lugar a um homem e profissional mais maduro, divorciado, mas ainda com o pé na boemia.

Enquanto no início de “Carnaval”, primeiro texto dessa parte da coletânea, reflete que “O importante é que me sinto mais à vontade e seguro para escrever, e tenho ideias para um romance além de crônicas e poemas já escritos que têm sido cada vez mais fáceis de fazer.”, também desabafa: “Sinto falta dos meus impulsos mais loucos, quando ajo sem pensar, distraído, incisivo e feliz. Mas foram justamente esses impulsos que ocasionaram a maior parte dos problemas.”.

A veia poética também está mais presente. No fatídico ano de 2020, escrevia o autor:

“a cada dia que passa

vivo um dia

morro um dia”

Bruno Resende, inclusive, tem uma obra já publicada pela Editora Penalux, intitulada “Estes poemas”.

A tônica dessa segunda parte é realmente a fragmentação, a forma dos textos é bem diversa. Temos anotações, reflexões, listas, notícias e vão de um narrador em primeira pessoa, o eu: “Eu, em particular, estou numa onda de cortar adjetivos quando escrevo.”, passando pela terceira pessoa: “a professora pediu a seu namorado que arranjasse um pouco de pelo de taturana tratado em éter para esquecer tudo aquilo”, e também ao narrador que diz: “Você está sozinho em Buenos Aires, pouco tempo depois de uma separação turbulenta, viajando para fugir, esquecer e caçar.”.

Por todo o texto, tanto na primeira, mas com destaque na segunda parte, abundam referências a escritores como Julio Cortázar, Machado de Assis, Balzac, Karl Ove Knäusgård, David Foster Wallace, Nietzsche, Sartre, Hemingway, Bukowsky, dentre outros, e que são lembrados por reflexões como: “pensamos que os velhos são conservadores, mas isso não é verdade; os jovens são conservadores porque, sem saber ao certo como viver, imitam ou aprendem a viver como os velhos.”, de Tolstoi.

É um livro que trafega entre autoficção, relato de viagem, notícias, poesia, fantasia, o que traz um dinamismo muito grande para a obra e que percorre as mais diversas trajetórias, como a vida. E no fim, o menino que no prefácio ficamos sabendo do desejo de ser egiptólogo apresenta-se aqui como o arqueólogo dos próprios textos ao costurar essa Colcha de Retalhos.

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