“Línguas de fogo”, de Claire Varin: um ensaio poético sobre Clarice Lispector

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Existe algo muito bonito por trás das pesquisas acadêmicas que vai além de metodologia, hipótese e conclusão. Esse algo nem sempre é encontrado ou sentido num ensaio, ou tese, ainda que em muitas ocasiões o encontremos escondido nas entrelinhas da linguagem formal. Esse “algo” que menciono, e que devo antecipar que inunda a escrita de “Línguas de fogo”, de Claire Varin, é a paixão pelo objeto de pesquisa.

É claro que muitas vezes precisamos nos distanciar um pouco daquilo que pesquisamos para fins acadêmicos, mas o amor pelo tema que perseguimos e estudamos como arqueólogo em busca de fóssil, o amor por aquilo a que nos dedicamos rotineiramente, o amor por aquilo que ocupa nossas estantes – esse amor pelo objeto de pesquisa alavanca qualquer base teórica.

“Sempre desconfiei de que assim como os leitores procuram certos livros, há livros que procuram certos leitores. […] Curiosa, já com a ideia de escrever e defender uma tese, Claire Varin estava atrás de Clarice Lispector. E sem nenhuma dúvida Clarice Lispector estava no encalço de Claire Varin.” [p. 13]

“Línguas de fogo” é um ensaio sobre Clarice Lispector que não falta paixão, mas não se perde no sentimento. Claire Varin é quem possibilita que vejamos uma faceta mais aprofundada da literatura clariciana, e Lúcia Peixoto Cherem é quem viabiliza a leitura traduzida para o português – deve ter sido, inclusive, bastante desafiador traduzir um ensaio que, fugindo do padrão, usa tanta linguagem poética ao mesmo tempo que segue uma formalidade de pesquisa.

O livro, publicado pela Nós, é adaptação da tese de doutorado de Varin, autora canadense contemplada pelo prêmio da Sociedade de Escritores Canadenses e também pelo do Conselho de Artes e Letras do Quebec. Para além das premiações, Varin criou um elo com Clarice Lispector que se iniciou em 1979, quando pela primeira vez ouviu sobre a escritora enquanto cursava Letras – naquele momento, tudo o que tinha a seu alcance era uma tradução de A paixão segundo G.H. publicada na França.

Leia também: “Línguas de fogo”: ensaio de Claire Varin esmiúça vida e obra de Clarice Lispector

Para a pesquisadora, deparar-se com Clarice não era mero acaso acadêmico; o encontro fugia do lado mundano e do “arroz com feijão” dos motivos pelos quais escolhemos uma temática a ser estudada; deparar-se com Clarice era um raro e repentino encontro de almas:

“Percorrendo o caminho de Clarice, passo a passo, traço a traço, Claire deixou de ser, como era fatal, uma estudante que pesquisava seu assunto. Entre Clarice e Claire, deu-se um encontro de almas. Não se tratava mais de uma questão acadêmica de currículo.” [p. 14]

Como muitos leitores apaixonados por Clarice, Claire Varin iniciou seu contato com a literatura da autora brasileira através de A paixão segundo G.H. e não se contentou com a narrativa dessa personagem que só se conheciam as iniciais. Provavelmente os críticos da época já imaginavam que Clarice ultrapassaria sua vida, mas essa certeza passou a se firmar com a paixão de Varin, que iniciou seus estudos sobre a autora apenas dois anos após sua morte. Muitos leitores como eu, que nasceram um bom tempo depois, mas são igualmente apaixonados por Clarice, devem um mundo de idêntica paixão e gratidão pelo trabalho de Varin e de outras pesquisadoras e pesquisadores apaixonados pelo enigmático universo clariciano. 

 G.H., a barata e a mãe de Clarice

O ensaio de Varin é dividido em partes que exploram diferentes temáticas da ampla literatura de Clarice, a exemplo do capítulo “A barata”, que se dedica a explorar o inseto que dá nome a essa seção, e que também é uma “personagem” fundamental para o desenrolar da obra A paixão segundo G.H. 

Abrindo um espaço para comentar meus pensamentos sobre esse livro tão importante de Clarice, devo dizer que sempre fiquei refletindo sobre o grotesco nos escritos da autora, e em A paixão segundo G.H. fiquei ainda mais impressionada com esse aspecto. A barata, em uma primeira leitura mais superficial, pode representar apenas um componente esquisito da narrativa que abre margem para uma situação nojenta – e também foi o que pensei quando, junto à G.H., enfrentei a tal barata. 

Por Clarice ser uma escritora nada óbvia e enigmática até o ponto final de seus livros (que, na verdade, nunca são de fato finalizados), nem sempre fica em evidência o real “significado” de cada elemento de seus textos; mas é certo que nada é posto por mero acaso. E então Claire Varin traz algo muitíssimo curioso, e que eu jamais imaginaria ou saberia caso não fosse “Línguas de fogo”. 

A barata surge em um momento em que Clarice ainda tampouco era nascida: sua mãe, portadora de uma doença até hoje inexplicável, acreditava que se curaria quando desse à luz. O que acontece, porém, é que a expectativa da mãe é frustrada, o que fez Clarice carregar uma grande culpa para o resto de sua vida. Em A descoberta do mundo, a autora escreve:

“[…] fizeram-me para uma missão determinada, e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo.” [p. 153]

Em seus ombros infantis, e na pena de escritora da idade adulta, Clarice carregou essa tal culpa, que foi recorrentemente posta em seus livros da mesma forma que se escrevem epigramas em lápides. Esse remorso é ainda alimentado pela morte de sua mãe, que é inclusive mencionado pela Folha de São Paulo um dia após o falecimento de Clarice, em 9 de dezembro de 1977: “[Clarice] teve uma infância pobre, e sua mãe, com o parto, ficou paralítica.” [p. 42]

E a melancolia se expandirá para sua literatura, atingindo, inclusive, A paixão segundo G.H. e a emblemática barata. Assim como em Água viva há o homicídio (simbólico) da mãe, relacionada também como um animal (uma lesma branca de corpo molenga), a barata seria também uma representação materna. E, assim sendo, escreve Varin: “a mãe, sob a forma de uma barata, é esmagada contra a porta de um armário pela narradora embriagada pelo desejo de matar.” [p. 43] A barata, assim como a mãe de Clarice, é atingida por uma paralisia antes de ser morta. Se é após comer o inseto que G.H. toma consciência, então podemos chegar na conclusão que é a barata que permite seu (re)nascimento. O mais curioso é que, após matar o inseto, a personagem se prende em uma oração a sua mãe: 

“Mãe: matei uma vida, e não há braços que me recebam agora e na hora do nosso deserto, amém. […] Mãe, eu só fiz querer matar, mas olha só o que quebrei: quebrei um invólucro! […] De dentro do invólucro está saindo um coração grosso e branco e vivo como pus, mãe, bendita sois entre as baratas, agora e na hora desta tua minha morte, barata e joia.” [p. 109]

Claire Varin atinge seu leitor de maneira inédita: aquele que não conhecia Clarice, passará a sentir pungente necessidade de ler cada centímetro de sua prosa; aquele que já era igualmente apaixonado por Clarice, apenas reforçará sua visão sobre a dimensão da necessidade de estar, rotineiramente, em contato com seus escritos.

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Livros utilizados:

A paixão segundo G.H. 5° ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977 

A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

VARIN, Claire. Línguas de fogo. Tradução por Lúcia Peixoto Cherem. São Paulo: Editora Nós, 2023.

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