“A Paixão Segundo G.H.”: Entrevista com Luiz Fernando Carvalho e Maria Fernanda Cândido

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No começo do mês, tivemos um momento especial no Jornal Nota. Fomos convidados para uma entrevista exclusiva com o diretor Luiz Fernando Carvalho e com a atriz Maria Fernanda Cândido sobre o lançamento do filme “A Paixão Segundo G. H.”, baseado na obra de Clarice Lispector.

Confira a entrevista completa:

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Como foi o processo de transformar esse livro tao difícil para o cinema? Em especial porque grande parte da ação se acontece no interior da personagem G.H..

Luiz Fernando Carvalho: Transformar essa ação do interior para o exterior em ação, é… I can get no satisfaction, entende? Eu não me satisfaço. Eu sempre acho que estou fazendo o meu último trabalho. G.H. me afeta por várias razões. A questão da forma de relato, para mim é como se fosse uma carta, uma carta de amor, uma carta de despedida, uma carta sobre o fim, uma carta sobre o começo. Essa forma muito comum dentro da história da literatura, ela me interessa muito como gênero cinematográfico. Acho que não há esse gênero no cinema, a carta. Ao mesmo tempo, a carta é um elemento muito cinematográfico.

A Clarice chegou até mim de diversas formas. Talvez a mais, digamos, primordial tenha sido o fato de que durante muitos anos eu recorri à imagem dela numa pesquisa pessoal sobre a imagem da minha mãe, que eu perdi na primeira infância. E minha mãe, assim como eu, tem esse biotipo mais longilíneo, por ela ter sido sertaneja, de Maceió – por coincidência, a primeira cidade que Clarice desembarcou fugindo dos progroms. Todas essas coincidências me levavam, já desde a adolescência, para a Clarice. Dentre as obras da Clarice, essa carta dá uma espécie de diagnóstico do fim, porque é um romance escrito a partir de uma ruptura, poia ela rompeu com o casamento e com uma relação de paixão que começou a existir. Isso caiu ali e talvez a literatura a tenha salvado. De um certo modo, também acho que o mundo das imagens, o mundo do cinema me salvou.

O filme dá conta dessa tentativa de recolher tudo o que nos constitui e que, mesmo assim, não há palavra nem relato que dê conta disso. A via crucis somos nós mesmos. Então, nós temos que, na verdade, nos encontrarmos com nós mesmos. Nada vai acontecer antes da experiência em si de estar vivo. Foi dessa forma que me agarrei ao audiovisual, não querendo chegar em lugar nenhum, mas querendo depositar ali, nesse meio, nesse suporte, questões de vida. Nesse sentido, eu me aproximo do que Clarice chama de “amadora, eu sou uma escritora amadora”. E eu sou um cineasta amador.

Maria Fernanda Cândido: E eu sou uma atriz amadora e espero continuar sendo. E o Luiz me deu a mão. Quando chegou ao final do filme, daí já fui eu que dei a mão para ele. Isso está lá.

LFC: São relações que estão se entrecruzando. Literatura, vidas, a vida dela, a minha vida, a vida dos outros, a vida de Clarice, a vida inventada pela Clarice, inventada pela Maria Fernanda.

MFC: Nesses dias a gente estava falando sobre infância. Eu disse que sempre fui uma criança muito observadora, e esse livro me levou para essa criança, essa criança que olhava o mundo e observava. Sempre fui uma pessoa assim, falo muito pouco, eu não sou de ficar me manifestando, de emitir minhas opiniões. Sou uma pessoa que mais olha, observa e processa. Esse livro me jogou de novo para essa criança, depois da adolescente, e essa observação do mundo, de quando você entra na vida adulta, tem filhos, começa a ver essas outras existências ali crescendo e se desenvolvendo. É uma vida toda.

Você já tinha lido A paixão segundo G.H. antes de participar do filme?

MFC: Li esse livro com 28 para 29 anos. Quem me presenteou foi o Luiz para ajudar em um outro trabalho, a novela Esperança, de 2002. Eu tenho esse livro até hoje. Só que era já no final da novela. Quando eu li, sofri um impacto tão grande que já nem sabia mais onde estava. Depois, tive contato com o livro para fazer a preparação para o filme.

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Quanto tempo demorou esse processo de preparação para o filme?

LFC: A vida toda, a minha vida toda. Há trinta que estamos preparando G.H., de um certo modo, através de outros personagens, outros trabalhos. Isso tudo nos preparou para chegar àquele momento, em 2018. Nesse processo criativo de oficinas teóricas e oficinas práticas, cercamos a obra de estudiosos para debater os temas, as entrelinhas do romance, da literatura, da obra, da vida, daquele texto no qual você está se aproximando, para descobrir qual é o modo que você vai se aproximar. Só depois desses encontros é que se descobre onde você vai colocar a câmera. E o modo que a Maria Fernada tem que atuar, de modo não naturalista. Você descobre que aquilo ali não é natural, não tem nada de natural ali. Tudo isso vai nos alimentando estetica, emocional e até espiritualmente, para nos encorajar até uma criação que vai em direção a uma tela em branco. Você não traz nenhuma referência. Eu nunca cheguei para ela e disse “olha, veja tal filme”. Não faço isso nem comigo. São anos de cumplicidade em outros trabalhos. Quando nos encontramos, nós verticalizamos esse trabalho, fazemos ele como se fosse o último. Tenho total consciência quando estou trabalhando com ela que a estou empurrando contra esses limites para ela entender que pode ir além. Ao mesmo tempo, ela também está me devolvendo coisas que estão me fazendo transpor os meus limites como diretor.

MFC: É uma coisa bonita isso que você acabou de dizer, Luiz. Por que você faz o que você faz na vida? Cada um tem a sua razão. Trabalhando com o Luiz, essa dimensão sagrada do ofício é muito evidente. Através desses projetos, de todos esses trabalhos, você reafirma o porquê. Isso não acontece em todo momento. Eu sempre tive esse tipo de experiência trabalhando com o Luiz.

É muito interessante no filme o papel central da Janair, do quarto da empregada, que é onde a barata é encontrada. Como é que foi trabalhar com essa leitura da obra?

LFC: A camada sociológica está em toda a obra da Clarice. Mas está muito nas entrelinhas. Por outro lado, G.H. nunca foi um texto bem lido pela maioria dos leitores. Ele foi muito bem lido por poucos. Tomo a liberdade de dizer que até alguns acadêmicos leram mal. Existem pessoas que, por exemplo, inviabilizaram Janair. Você vai conversar com essas pessoas, vai ler o livro dessas pessoas e ela não está lá. A mim, me pareceu fundamental tomar para nós essa missão de todo artista, aqui no Brasil, de reescrever a história, de rever essas coordenadas da Clarice, que estão nas entrelinhas, mas também estão presentes no texto, com os olhos de hoje, com a mão da História.

Aí essa camada sociológica ganha uma relevância muito forte. Está ali a questão da luta de classes, que é fundamental a continuarmos pensando no Brasil. A gente não pode esquecer das senzalas modernas que continuam. Enquanto estamos aqui, estão sendo construídos em todo o Brasil edifícios que redesenham a planta baixa, a senzala moderna, o elevador da área de serviço, onde a doméstica deve subir, ela não deve subir pelo elevador social da frente. Tudo isso é uma reatualização do racismo, do colonialismo, dos imperialismos todos.

E tudo isso está ali, basta que você leia, que você se dedique, que você mergulhe naqueles receptáculos, porque não diria que a barata seja exatamente uma metáfora. Ela é muito mais do que uma metáfora, porque é um receptáculo aberto que vai receber suas várias e várias camadas. Ora ela vai ser uma barata, ora vai representar o outro, que é diferente de você; o super diferente, seja em raça, religião, gênero, seja o que for. Ela vai representar ela mesma, representar seus desejos proibidos, tidos como imundos, desejos rastejantes, vai representar a sua mãe, vai representar o aborto que você fez, vai representar Deus, vai representar o homem pelo qual você está apaixonado. É um receptáculo aberto, uma caverna aberta para ser preenchida de sentidos e eu acho que aí entra a função do cinema.

Não é a primeira vez que nós dois trabalhamos dessa forma, com uma adaptação. A gente não acredita numa adaptação, porque uma adaptação seria o mesmo que reduzir todas essas, digamos, estranhezas, esses espinhos da literatura. Esses espinhos da literatura me interessam, eles estimulam o meu olhar cinematográfico. Se eu adaptar isso, é como se eu castrasse essa potência literária. A gente já tinha feito isso até na televisão, com Capitu a partir do Machado de Assis, onde o texto era absolutamente o do Machado. Não tinha uma linha que não fosse do Machado. E esse procedimento foi feito exatamente aqui.

Quando vi o filme ficou claro para mim que a paixão de G.H. era como a paixão de Cristo, principalmente nas cenas em que a personagem está esculpindo. Como foi chegar a essas imagens?

LFC: No ponto da visualidade, é tudo inventado na hora. Não tem essa de botar o sangue aqui, ali, virar. Tudo faz parte de um grande improviso, onde o rigor da palavra está ali, em paralelo. Mas em termos de mise-en-scène, tudo é improvisado.

Não tem storyboard?

LFC: Não, odeio storyboard. E também entra a disponibilidade radical da Maria Fernando de entrar nessa correnteza misteriosa, que você não sabe onde vai parar. Vou começar essa ação aqui e onde vai acabar? Como vai acabar? Para os técnicos também. Ela vai pegar o quê? Onde é que eu marco o foco? O fato de eu estar com a câmera ajuda muito nessa improvisação. Todos esses departamentos estão improvisando ao mesmo tempo sobre um trecho do livro. E a atriz é a pessoa que está conduzindo essa improvisação toda, agarrada no texto da Clarice.

Quer dizer, é um tour de force que afunila nela. A Maria Fernanda precisa ter uma disponibilidade para esse processo. Daí esse período maior na preparação, para preparar o corpo, a respiração, a voz, os gestos, tudo, para que esse violino aqui, esse instrumento esteja afinado para na hora a gente tocar, sabe-se lá que nota. Para ela é uma linguagem, porque não é decorar texto, é muito mais do que isso.

O jogo comigo, com a câmera é uma espécie de pas-de-deux o tempo inteiro, principalmente quebrando a quarta parede, porque também há uma ideia de emular. Eu criei uma lente que emula a distância que você fica do livro, entre a sua retina e o livro. Tem milhões de coisas acontecendo, e ela tem que ter a disponibilidade de entrar nesse mar e criar como uma coautora cada camada.

Maria Fernanda, como foi para você essa cocriação?

MFC: Primeiro, tenho que gostar disso, tenho que acreditar. Eu preciso estar apaixonada por esse ofício, pela literatura, pelo cinema. E essa paixão me leva em direção a isso, com confiança. Porque eu vou rumo ao desconhecido. Você não tem um roteiro, você não sabe que horas vai ser o “corta!”, até onde a gente vai, não é assim, tem um improviso que é essa coragem de ir em direção a esse desconhecido. Tudo pode acontecer. Ficou comigo aquele barulhinho da câmera, porque esse filme foi feito em película, tenho essa sensação muito impressa no meu corpo. Você tem uma experiência sensorial, física, de alta percepção, porque todos os seus sentidos estão sendo receptáculos ali. Você está literalmente funcionando como um instrumento, e a minha relação com a palavra passa a ser absolutamente… Agora, para achar esse adjetivo, nem sei te dizer. Porque é desse campo do indizível, porque essa fica sendo a minha grande matéria-prima, a única, é o que eu tenho, é o verbo, é a palavra, é esse dizer. Com esse corpo, com esse parceiro [Luiz Fernando Carvalho], com esses parceiros todos, porque éramos uma equipe não muito grande.

Tenho impresso em mim esse som da câmera, a respiração das pessoas da equipe, porque você vai ter um aguçamento tão grande nos seus sentidos que eu tenho essas respirações todas. Eu escutava isso. A respiração da pessoa que está segurando a luz, a respiração do Luiz, a respiração do assistente. Você está ali vivendo esse tipo de momento, com essa intensidade, sem um roteiro, sem um apoio, sem esse apoio facilitador, sem uma terceira perna. que pudesse deixar esse momento confortável. Não é confortável, é desconfortável, mas é altamente vivo.

LFC: É uma performance plena. Você vê que ela está plena. E isso é muito difícil hoje em dia. Os atores estão sempre preocupados como serão enquadrados. Abandone isso. Não é esse o tipo de filme que eu faço, de fazer o casting, marcar a data e vamos fazer. Não dá, não é isso, é outra coisa. Essa mudança, como diretor, se deu em Lavoura Arcaica, quando fiquei isolado com o elenco numa fazenda. Depois disso, em todos os trabalhos jogo fora essas fórmulas para poder chegar nessa disponibilidade da tela em branco. Uma tela em branco aqui, o personagem vai projetar nela. Ela [Maria Fernanda Cândido] ser essa tela branco.

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