Os 10 melhores escritos de Bocas do Tempo, de Eduardo Galeano

Este livro conta histórias que vivi ou escutei.
Em alguns casos, as histórias que escutei mencionavam suas fontes. Quero também agradecer aos muitos colaboradores que não estão mencionados. (Eduardo Galeano, na edição da L&PM de 2011)

Tempo que diz

De tempo somos.
Somos seus pés e suas bocas.
Os pés do tempo caminham em nosso pés.
Cedo ou tarde, já sabemos, os ventos do tempo apagarão
as pegadas.
Travessia do nada, passos de ninguém? As bocas do
tempo contam a viagem.

 

Peixes

Senhor ou senhora? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? Ou às vezes ele é ela, e às vezes ela é ele? Nas profundezas do mar, nunca se sabe.
Os meros e outros peixes são virtuosos na arte de mudar de sexo sem cirurgia. As fêmeas viram machos e os machos se transformam em fêmeas com uma facilidade espantosa; e ninguém é alvo de deboche nem acusado de traição à natureza ou à lei de Deus.

 

A rua
Quantos milhões de pessoas cabem numa única rua?
Naquele meio-dia, todos os habitantes de Buenos Aires andavam pela Rua Florida, a única rua ainda caminhável da cidade. Era uma multidão de urbanoides fugidos de seus invólucros, uma multidão de pernas que caminhavam muito apressadas, como se fosse durar pouco aquele espaço de exílio no reino dos motores.
No meio daquele mundaréu de gente, Rogelio García Lupo percebeu que um senhor vinha se aproximando, trabalhosamente, abrindo espaço com os cotovelos, até onde ele estava. O senhor, de aspecto respeitável, abriu os braços; e Rogelio, sem tempo para pensar, foi abraçado e abraçou. Era um rosto vagamente familiar. Rogelio não atinou mais que perguntar:
Quem somos?

 

Ver

Nos campos de Salto, aquele capataz, já entrado em anos, tinha fama de ver o que ninguém via.
Carlos Santalla perguntou a ele, com todo o respeito, se era verdade o que se dizia: que ele via o invisível porque tinha mente grande. Tão grande era sua mente, dizia-se, que não cabia em seu crânio e lhe dava dor de cabeça.
O velho gaúcho riu às gargalhadas:
– Eu, o que posso dizer é que sou muito curioso e que tenho sorte. Quanto mais diminui a minha vista, mais vejo.
Carlos tinha nove anos quando escutou isso. Quando já andava cumprindo um século de idade, ainda se lembrava. Os anos também tinha diminuído sua vista, para que ele visse mais.

 

O mar
Fazia quase um século que Rafael Alberti a levava pelo mundo, mas estava contemplando a Baía de Cádiz como se fosse pela primeira vez.
Do terraço, estirado ao sol, perseguia o voo sem pressa das gaivotas e dos veleiros, a brisa azul, e ir e vir da espuma na água e no ar.
E virou-se para Marcos Ana, que calava ao seu lado, e apertando seu braço disse, como se nunca tivesse sabido, como se tivesse acabado de ficar sabendo:
– Como é curta a vida.

 

A instituição conjugal

O capitão Camilo Techera sempre andava com Deus na boca, bom dia graças a Deus, até amanhã se Deus quiser.
Quando chegou ao quartel de artilharia, descobriu que não havia um único soldado que estivesse casado como Deus manda, e que todos viviam em pecado, revirados na promiscuidade como os animais do campo.
Para acabar de vez com aquele escândalo que tanto ofendia o Senhor, mandou chamar o sacerdote que oficiava a missa na cidade de Trinidad. Num só dia, o padre administrou aos soldados da tropa, cada um com sua uma, o santíssimo sacramento do matrimônio em nome do capitão, do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
A partir daquele domingo todos os soldados se tornaram maridos.
Na segunda feira, um soldado disse:
Essa mulher é minha.
E cravou o facão na barriga de um vizinho que estava olhando para ela.
Na terça feira, oturo soldado disse:
Isso é para você aprender.
E torceu o pescoço da mulher que lhe devia obediência.
Na quarta feira…

 

O vento

Diego López fazia quatro anos e naquela manhã a alegria saltava em seu peito, a alegria era uma pulga saltando sobre uma rã saltando sobre um canguru saltando sobre uma mola, enquanto as ruas voavam ao vento e o vento batia as janelas. E Diego abraçou sua avó Gloria e em segredo, junto ao ouvido, ordenou:
– Vamos entrar no vento.
E a arrancou da casa.

 

O alfaiate

Jurou que ia voar. Jurou por todas as casas que havia aberto e por todos os botões que havia pregado e por todos os incontáveis ternos e vestidos e sobretudos que havia medido, recortado, alinhavado e costurado, pontada após pontada, ao longo dos dias de sua vida.
E desde então, o alfaiate Reichelt dedicou todo seu tempo à confecção de enormes asas de morcego. As asas eram dobráveis, para que pudessem entrar no cubículo onde ele mantinha a loja e a residência.
Enfim, após muito trabalho, ficou pronta aquela complicada armação de tubos e varetas de metal, toda coberta de tecido.
O alfaiate passou a noite sem dormir, rogando a Deus que lhe desse um dia de vento. E na manhã seguinte, manhã de vento forte do ano de 1912, subiu ao ponto mais alto da Torre Eiffel, abriu suas asas e voou sua morte.

 

A palavra
Na selva do Alto Paraná, um caminhoneiro me avisou para tomar cuidado:
– Olho vivo com os selvagens – me disse. – Ainda tem alguns soltos por aí. Ainda bem que sobraram poucos. Eles já estão sendo mandados para o zoológico.
Disse isso em castelhano. Mas não era essa a sua língua do dia a dia. O caminhoneiro falava guarani, na língua desses selvagens que ele temia e desprezava.
Coisa estranha: o Paraguai fala o idioma dos vencidos. E coisa mais estranha ainda: os vencidos acreditam, continuam acreditando, que a palavra é sagrada, porque ela revela a alma de cada coisa. Acreditam os vencidos que a alma vive nas palavras que a dizem. Se eu dou minha palavra, me dou. A língua não é um depósito de lixo.

 

O ginkgo

É a mais antiga das árvores. Está no mundo desde os tempos dos dinossauros.
Dizem que suas folhas evitam a asma, acalmam a dor de cabeça e aliviam os achaques da velhice.
Também dizem que o ginkgo é o melhor remédio para a memória fraca. Está comprovado. Quando a bomba atômica transformou a cidade de Hiroshima num deserto de negror, um velho ginkgo caiu fulminado perto do centro da explosão. A árvore ficou tão calcinada como o templo budista que protegia. Três anos depois, alguém descobriu que uma luzinha verde assomava no carvão. O tronco morto havia dado um broto. A árvore renasceu, abriu seus braços, floresceu.
Esse sobrevivente da matança continua lá.
Para que ninguém esqueça.

Related posts

“Ode à errância”: a poesia de Adonis, o maior poeta vivo de língua árabe 

“Quebra Tudo!”: Hermeto Pascoal ganha primeira biografia sobre sua vida e obra

Equipes brasileiras são campeãs no Mundial de Robótica nos EUA