Frankenstein, de Mary Shelley ou o destino ético da criação da vida

Autora: Mary Shelley
Editora: Zahar, 2017
Tradução: Santiago Nazarian
Páginas: 248

Todo texto é um Frankenstein. Toda escrita, no fundo, é uma batalha diante das palavras a fim de dar vida ao que não tem vida, dar forma à massa informe, dar nome ao inominável, dar corpo ao incorpóreo. Entretanto, dar vida é, mais que tudo, dar morte. É evidente, e parece difícil negar, que “tudo que é vivo, morre”, como diria Ariano, através de seu personagem Chicó. Isto pode se desdobrar, diante do mundo, em uma missão inescapável, como Mary Shelley viria a afirmar, “para examinar as causas da vida, precisamos primeiro entender a morte.” Escrever, assim, não é um gesto de fazer algo nascer, mas de criar a possibilidade de que algo morra, de que algo pereça e, desta forma, tenha uma existência nas coisas da vida e possa, quem sabe, frente a realidade das coisas, sobreviver.

É por aí que é interessante pensar a obra de Frankenstein. Há nela, evidentemente, um caráter duplo: a existência do livro de Shelley, que faz existir Frankenstein e a existência da figura de Frankenstein propriamente dita, tornada real pela escrita que se incorpora no imaginário de gerações e gerações de leitores. Escrita e vida: morte e palavra. O destino dos homens e o destino das palavras. Eis a imensa missão de uma obra como Frankenstein.

Frankenstein conta a história de um sujeito que é resgatado por um barco após dias e dias a deriva no mar. Ali, o sujeito, adoecido, revela ter um passado obscuro do qual não consegue se livrar. Para tentar purgar seu passado ou simplesmente para encontrar uma nova forma de sobreviver, ele resolver contar seu passado: trata-se da história do jovem rapaz Victor que, após meses em um laboratório, conseguiu criar um ser a partir de pedaços de outros seres. Através do desenvolvimento e manipulação científica, ele tornou possível a criação da vida. Entretanto, a figura criada é assustadora até para os olhos de seu criador. Assim, Victor abandonou a criatura e, apenas meses depois, descobriu que ela foi a responsável pelo assassinato de uma figura querida a Victor. O jovem, então, saiu em busca de se vingar de seu monstro para tentar livrar o mundo daquilo que criou, mas, ao se aproximar, descobre um caminho para além do bem e do mal.

Se eu fosse destacar um ponto essencial para se pensar a figura de Frankenstein seria, primeiro, a ideia de que o gesto de um dia, de gênese de criação, pode alterar tudo aquilo que chamamos de destino e que isto, no fim das contas, é apenas nossa trajetória de vida lançada em direção à sociedade. O desdobramento deste fato, me parece, é que ao olhar diretamente para a gente, na hipótese de que nossa criação é essencial ao mundo, perdemos a dimensão de que o mundo também tem seus mecanismos e suas demandas. Victor, em sua individualidade obstinada, era incapaz de sair da chave da pergunta: “O que pode deter o coração determinado e a vontade decidida do homem?” Assim, preso a si próprio, não conseguia perceber que o gesto de impor algo ao mundo não deve ser, jamais, em apenas uma direção, mas deve levar em conta uma dinâmica do destino: o rumo que as coisas vão quando voltam. Afinal,

Somos criaturas não moldadas, apenas semiprontas, se alguém mais sábio, melhor e mais amado do que nós mesmos, tal como um amigo teria de ser, não vem prestar seu auxílio e aperfeiçoar nossa natureza fraca e falha.

Eis o motivo que precisamos sair, ao pensar no monstro de Frankenstein, da chave de bem e do mal e da criação de nosso obscuro. Este jogo de espelho comum às obras do século XIX não nos serve mais, mas ainda nos cabe pensar aquilo que fazemos, pensamos e criamos em nome da ciência. A própria Shelley soube perceber isso, ao afirmar pela boca de Victor que

Se o estudo ao qual você se dedica tende a enfraquecer seus afetos e destruir seu gosto pelos prazeres simples, que nada deveria poluir, então esse estudo certamente não se justifica, não é adequado à mente humana.

Frankenstein é o nosso fantasma, mas não como monstro. Como escrita. Ele é o que devemos pensar em cada gesto de criação, quiça sobre qualquer coisa criada. Criamos o que? Como? Pra quem? Talvez esta seja a dimensão ética e a única possível para desfazer uma dinâmica de violência.

A aventura de Victor e sua criatura é uma das obras mais intrigantes e essenciais da história da literatura. E ela chega até nós não como a gênese de um mistério, mas como a ponte que o atualiza e torna suas questões, ainda hoje, essenciais.

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