Leituras #29: O Vento da Noite, de Emily Brontë

Autora: Emily Brontë
Editora: Civilização Brasileira, 2016
Páginas: 154
Tradução: Lúcio Cardoso
Organização e Apresentação: Ésio Macedo Ribeiro
Edição Bilíngue

A poesia pode ser uma flor no asfalto, uma luz no fim do túnel e até uma forma estranha que sussurra “nunca mais”. A poesia é quase um jeito, um vício, uma maneira estranha de olhar o mundo. Para Emily Brontë é um vento da noite. E o que isso significa? Que a poesia, talvez, é uma intrusa, que invade nosso espaço, no porto seguro da intimidade, pelas frestas das portas e pelas gretas das janelas e nos arrebata com sua potência. Será a morte? Será uma dor qualquer? A poesia, no entanto, é o antídoto também para esse vento: ele venta, mas ao ventar, se inventa, como numa espiral de força e forma.

O Vento da Noite, de Emily Brontë, é um livro de poesia da consagrada autora de O Morro dos Ventos Uivantes. Composto por trinta e três poemas selecionados e traduzidos por Lucio Cardoso, escritor do início do século XX, a obra revela apenas uma parcela da produção poética da irmã da também famosa escritora Charlotte Brontë. Os poemas, quase sempre com temas que giram em torno do amor, da morte e da dor de existir, revelam uma face do lirismo romântico e de uma expansão da subjetividade.
O Vento da Noite, poema que abre o livro, inicia-se assim:

Á meia noite de verão, mole como um fruto maduro,
A lua sem véus lançou sua luz
Pela janela aberta do parlatório,
Através dos rosais onde o orvalho chovia.

Sentada e perseguindo o meu sonho de silêncio,
A doce mão do vento brincava em meus cabelos
e sua voz me contava as maravilhas do céu.
E a terra era loura e bela de sono.

É possível perceber, logo de cara, como a natureza, em um estilo que flerta com o simbolismo, se revela como representante de ideias maiores, quiçá sentimentos humanos, em uma espécie de metamorfose do natural em subjetividade. Este diálogo entre a luz que se projeta e do vento que conta sobre o céu, apresenta uma espécie de tentativa de escutar, via natureza, os mistérios do mundo. Na poesia de Emily existe algo a se revelar entre este mundo e o outro, talvez na linha de Shakespeare (com quem ela já foi comparada) que via “muito mais coisa entre céu e terra que a filosofia”. Talvez, por isso mesmo que seus poemas, apesar de sempre permanecerem em uma linha tênue entre o piegas e o belo, escapam do “mais do mesmo”.

Um dos melhores poemas do livro, Eis que estás de volta, sentencia, para mim, o que é a poesia de Brontë ao mesmo tempo em que nos aponta o que é a trajetória da vida:

Ó Mortal!
A fábula da vida é narrada bem depressa,
Mas basta uma vida – para não se morrer jamais.

Que mistério é este que ela procura? O que há em sua poesia que, embora esteja buscando algo, não se sabe exatamente como procurar? Esta pergunta, no último poema, se dirige a Deus, muito embora seja uma deus estranho, confuso, de muitas faces, de características ambíguas, quase mefistofélicas.

Um destaque para a tradução de Lucio Cardoso que, ao traduzir os poemas ainda na primeira metade do século XX, para ser específico da década de 20, já opta por manter uma tradução criativa, inventiva: “transcriação”, como diria Haroldo de Campos, ou “transubstanciação” como chamava Millôr Fernandes. Sem se preocupar com rimas ou versos, Lucio mantém o viço do poema ao tentar trazê-lo para si, para sua língua que, fatalmente, esbarra na nossa.

Da poesia de Emily Brontë fica uma sensação de que há escritas que, mais do que para o caderno, são para a vida. Isto aparece em uma epígrafe que sua irmã, Charlotte, coloca em seu último escrito:

“Estes versos foram os últimos
que minha irmã escreveu.”

Foto de capa: http://minhavidaliteraria.com.br/

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