30 anos sem Jorge Luis Borges: a jornada de um escritor-leitor

Começo esta matéria já avisando que, talvez, ela possa falar mais de mim do que de Jorge Luis Borges. Ou melhor dizendo, não que ela fale especificamente de mim, mas como o intuito é pensar em um Borges que também lê, preciso, antes de mais nada, pensar em mim que leio e em mim lendo Borges e imaginando Borges a ler muitos outros. Como pode ter ficado claro, meu texto é sobre isso: a leitura não é uma ação passiva de um texto que vem em direção ao ser, mas seu oposto – é o leitor que vai de encontro ao livro e, por ele, é lido.

Jorge Luis Borges, escritor argentino, era, antes de qualquer coisa, um grandessíssimo leitor. Sua dedicação à leitura de Macedônio Fernandes, também argentino, não é fato novo. É também comum a história de que, ao ficar cego, pedia para que alguém lesse os livros que gostaria ou que copiasse aquilo que sua mente gostaria de escrever e em muitas de suas obras e contos, pode-se ver um homem culto em direção a um projeto, a uma performance, a uma estrutura ou a um comportamento. Borges, ao escrever é um grande leitor de procedimentos e, por conseguinte, de mundos.

Como um exemplo, temos o livro de contos chamado O Livro de Areia, cuja inspiração é também um grande ato de um ávido leitor: o livro é inspirado numa passagem bíblica em que Jesus com uma vara rabisca algo na areia. Trata-se do único momento em todo relato de sua história em que se diz algo que Jesus tenha escrito, registrado, tanto que este trecho é usado até por historiadores para afirmar que Jesus era sim alfabetizado. O fato é que, a única coisa que Jesus escreveu em vida, ou seja, a única coisa que ele realmente imprimiu uma marca foi justamente na areia, espaço móvel, inconstante e variável. Jesus deliberadamente escreveu para ser apagado, ou pelo menos foi assim que Borges leu a Bíblia.

Acontece que O Livro de Areia passa a ser esta obra em que as coisas não são para serem eternizadas, carimbadas, ideologizadas, mas que exprimam espécies de espasmos no tempo (ou orgasmos, como diria Leminski). Este gesto deliberado de Borges, ou seja, esse esforço de apagar o que se escreve e, por conseguinte, colocar-se no lugar não de um autor, mas de um vazio, de uma opacidade, coloca-o do lado oposto de quem escreve – o lugar de quem in-screve e ex-creve. Seu objeto é o efêmero que abre gretas por dentre o fazer poético e deixa ali um vislumbre de sentido no mundo, nunca de totalidade.

Outro exemplo de Borges que podemos usar é o conto “Pierre Menard, autor do Quixote”,do Livro Ficções. No conto, o personagem em questão sonha escrever o Dom Quixote do Cervantes. Veja bem, ele não quer fazer uma adaptação ou tradução, muito menos uma releitura, ele quer escrever O Quixote, ou seja, a mesma obra do Cervantes. E para criar uma zona de choque, de um genial anacronismo deliberado, Borges genialmente expõe um trecho em que cola um trecho do Cervantes e em seguida um mesmo trecho atribuindo-o a Menard. Veja o trecho:

É uma revelação cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cer­vantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom Quixote, primeira parte, nono capítulo):

“… la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.”

 Escrita no século XVII, redigida pelo “engenho leigo” Cervantes, es­ta enumeração é um simples elogio retórico da História. Menard, em contrapartida, escreve:

“… la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.”

A história, mãe da verdade: a ideia é espantosa. Menard, contem­porâneo de William James, não define a história como uma investigação da realidade, mas sim como a sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu.

Este jogo lançado por Borges, articulando história, memória e literatura, coloca-o novamente no ponto chave desta matéria: Borges, mais que um escritor, é um leitor. Sua zona de atuação literária é afetiva, não programática. Seu espaço é a imaginação, jamais a ética. Sua literatura faz parte de uma estética de invenção ou de uma moral do afeto. Atribuir erroneamente um trecho de Cervantes a Menard é trazer, para todos eles, um espaço de confluência, um projeto de comunidade e acolhimento.

Como leitor do mundo, Borges é um dos mais preciosos contadores de história de nosso século. Somos hoje seres impossibilitados de narrar verdadeiras experiências? Sim, é possível, mas temos em Borges, um exemplo raro de capacidade de pensar o mundo como essa zona de aproximação entre tempos, homens e vidas. Sua proposta não é de fazer uma literatura para o mundo, mas para o próprio quarto: e que os quartos sejam muitos e que os corpos mobilizem-se para ler. E digo corpos, pois, ao tornar-se cego e precisar de outros para lerem para si, o corpo também se mobiliza, uma vez que ler passa a ser uma pulsão entre dois, num espaço infinito de presença e escuta.

Ler é, no fim das contas, mover seu corpo até o livro e ser lido por ele. Se algo se mexer por fora (o que vem de dentro nunca é confiável), terá valido a pena.

Veja o próprio Borges recitando seu texto “Borges e eu”:

Postado originalmente em:
http://literatortura.com/2014/06/jorge-luis-borges-escritor-ou-leitor-uma-literatura-de-invencao-e-afeto/

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