Selvagem é um espetáculo teatral solo que mergulha nas memórias de infância queer de Felipe Haiut, explorando as camadas de repressão e liberdade na construção da identidade. A peça combina narrativa autobiográfica e referências da cultura pop dos anos 90 para dar vida a uma história de descoberta, dor e resistência.
O espetáculo é um daqueles trabalhos difíceis de escrever, não pela complexidade do texto, ou pelo desempenho do ator em cena, mas porque falar de Selvagem é se permitir abrir feridas de qualquer ser humano que se propõe revisitar questões ainda não resolvidas.

A escolha dramatúrgica de Felipe Haiut, para construção do texto, é um golpe de mestre. Diferente de diversos autores, Haiut não prepara uma introdução para sua dramaturgia, ele expõe ao público sua primeira cicatriz adquirida aos 5 anos de idade. Nesse sentido, presenciamos uma urgência narrativa, como se o texto não pudesse esperar para ser dito — como se calar fosse, em si, mais uma forma de repressão. E é essa urgência que transforma Selvagem em um ato de sobrevivência.
A partir desse momento todo o público já está em plena comunhão com o trabalho que será apresentado. O texto não nos apresenta somente memórias de uma infância queer, ele percorre quase uma vida toda de invalidação e as dores de uma rigidez social. Haiut com seus diálogos cortantes nos leva a situações extremas, permitindo que o público crie imagens para elucidar a exposição violenta que crianças queer tiveram que lidar por falta de acolhimento.
O texto não se contenta em ser um relato autobiográfico; ele é um dispositivo de memória coletiva, especialmente para aqueles que viveram a invalidação de suas identidades.
A atuação de Felipe Haiut em Selvagem é uma aula de equilíbrio entre técnica e emoção, combinando controle vocal, presença cênicae um trabalho corporal que oscila entre a fragilidade e a libertação. Seu desempenho ultrapassa a autobiografia, transformando memórias pessoais em experiência coletiva através de uma narrativa urgente e visceral. Com um ritmo impecável, Haiut conduz o público de um tom confessional a explosões emocionais, sem perder a verdade cênica, fazendo de sua performance não apenas um relato, mas um ato político de resistência e sobrevivência.

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A cenografia de Selvagem se destaca pelo uso simbólico das TVs de tubo, que funcionam como extensões da memória e da narrativa, evocando nostalgia dos anos 90 e reforçando a dimensão autobiográfica. A iluminação minimalista, com tons azuis e rosas, oscila entre intimidade e expressão, metaforizando a descoberta e repressão da identidade queer. Embora não seja uma referência direta, a peça dialoga com a influência de Tadeusz Kantor na forma como objetos cênicos materializam memórias e traumas, além da urgência em encenar o silenciado. No entanto, Selvagem desenvolve uma linguagem própria, mais íntima e pop, transformando o pessoal em coletivo através de uma encenação que é tanto confessional quanto política.
A direção de Débora Lamm é precisa e potente, conduzindo o espetáculo com um ritmo impecável que equilibra intimidade confessional e explosão emocional, sem jamais perder a força narrativa. Sua abordagem visceral potencializa a urgência do texto, criando cenas impactantes que oscilam entre vulnerabilidade e resistência, enquanto a cenografia simbólica e a iluminação evocativa amplificam a dimensão política da peça. Lamm não apenas orquestra performance solo de Felipe Haiut, mas também transforma o palco em um espaço de memória coletiva, onde o pessoal se torna universal.

Considero que a combinação do trabalho de Débora Lamm e Felipe Haiut transforma esse espetáculo numa obra universal, por nos permitir acessar nossas crianças internas e acolhê-las. Por isso Selvagem é um trabalho difícil de descrever, pois ao visitá-los temos que lidar com nossas crianças internas, e nem sempre estamos preparados para isso. Esse trabalho com certeza irá perdurar em minha memória durante um bom tempo.
Selvagem é mais do que um espetáculo teatral — é um ato de cura e confronto, em que a direção certeira de Débora Lamm e a performance visceral de Felipe Haiut transformam memórias pessoais em um espelho coletivo. Através de uma narrativa urgente, cenografia simbólica e iluminação poética, a peça não apenas expõe feridas da infância queer, mas convida o público a observar suas próprias cicatrizes. Com uma força que oscila entre o íntimo e o político, Selvagem deixa uma marca duradoura: a de que resgatar a criança interior é um ato de resistência — doloroso, necessário e, acima de tudo, transformador.
Ficha Técnica:
Texto: Felipe Haiut
Direção: Debora Lamm
Elenco: Felipe Haiut
Iluminação: Felipe Lourenço
Direção de movimento: Denise Stutz
Figurino: Ticiana Passos
Cenário: Breno BL e Guilherme Larrosa
Video Instalação Cênica: Breno BL e Daniel Wierman
Trilha Sonora: Arthur Braganti
Visualizer: Vida Fodona
Relações Públicas: Nova Comunicações
Assessoria de Comunicação: Primeiro Plano e Dobbs Scarpa
Música tema “Coco Melado”: Billy Crocanty, Felipe Haiut, Luiza Yabrudi
Vozes: Kelson Succi, Amália Lima, David Lamm, Thiago Menezes, Marta Supernova, Arthur Braganti, Debora Lamm
Direção de Comunicação: Maria Antonia
Marketing Digital: Victor Novaes
Arte Gráfica: Estúdio Mirante
Produção: Thiago Menezes
Produtor Associado: Bruno Fagundes
Realização: Felipe Haiut