Veneno, espetáculo inédito no Brasil, conta a história de um casal que recebe uma carta anunciando que o corpo do filho precisará ser removido do cemitério onde foi enterrado, pois há veneno naquele solo. Um encontro entre esse casal, dez anos depois, escancara as dores de um luto ainda presente. O maravilhoso diálogo entrelaça o sofrimento de duas pessoas que perderam um filho, a si mesmas e uma a outra. Além de tocante e pungente, o espetáculo proporciona que momentos cômicos brilhem até mesmo nas tragédias mais profundas.
Veneno (originalmente Gif, em holandês) é uma peça da dramaturga holandesa Lot Vekemans, escrita em 2009. A peça explora como o casal lida com a morte do filho. O homem seguiu em frente enquanto a mulher permaneceu presa ao passado. Ambos os personagens carregam culpas não resolvidas, seja pela morte do filho, pelo fim do casamento ou pelas escolhas feitas após a tragédia.

O espetáculo explora a comunicação e solidão, onde o diálogo entre os dois revela a dificuldade de se comunicarem, mesmo em momentos de dor compartilhada. A solidão de cada um é acentuada pela incapacidade de se conectarem verdadeiramente. O texto possui uma linguagem crua, sem metáforas excessivas, intensificando a realidade dolorosa da situação.
Cléo De Páris e Alexandre Galindo entregam uma atuação técnica impecável, equilibrando intensidade emocional e contenção com maestria. Cléo traduz a dor do luto através de gestos precisos, voz modulada e uma presença carregada de tensão, enquanto Alexandre personifica a contradição da superação com fluidez corporal e ritmo calculado. Juntos, criam uma química afiada, onde desconexão e sintonia coexistem em cena, sustentando a narrativa com verdade e profundidade.
A excelência técnica de ambos se revela na expressão corporal, no domínio vocal e na capacidade de transmitir subtexto sem exageros. Cada movimento e pausa reverberam a complexidade do texto, transformando a peça em um estudo refinado de como a técnica serve à emoção sem jamais cair no melodrama. Uma atuação que não só comove, mas também demonstra o poder da arte teatral em sua forma mais pura.

Tecnicamente, a cenografia e iluminação da peça trabalham com precisão minimalista para amplificar a narrativa crua e emocionalmente densa. O cenário, composto por uma sala de reunião, cria um espaço claustrofóbico e impessoal, espelhando o distanciamento do casal e a aridez de seu luto. A luz fria e uniforme, típica de ambientes burocráticos, não só ambienta a cena com realismo, mas também metaforiza a frieza emocional e a desconexão entre os personagens, reforçando o “veneno” invisível que os corrói. A simplicidade proposital da composição cênica concentra toda a atenção no drama humano, demonstrando como menos pode ser infinitamente mais.
A direção demonstra um domínio excepcional da economia cênica, extraindo máxima potência da simplicidade ao harmonizar texto, atuação e elementos técnicos com precisão cirúrgica. Com um olhar sensível à nuance do luto, a encenação equilibra tensão e contenção, permitindo que os silêncios e gestos mínimos dos atores falem mais alto que palavras, enquanto a composição espacial e o ritmo revelam a desconexão do casal sem didatismos. A escolha por um realismo cru, sem artifícios, potencializa a verdade do texto, e a habilidade em dosar os raros momentos de humor sem quebrar a dramaticidade comprova um trabalho de afiação narrativa raro.

Veneno se consolida como uma experiência teatral impactante e necessária, onde todos os elementos convergem para criar um retrato visceral do luto e da desconexão humana. O espetáculo brilha justamente por sua capacidade de transformar dor em arte sem concessões, mantendo a autenticidade emocional. Mais do que uma peça sobre perda, é um estudo profundo sobre as feridas que o tempo não cura e os venenos invisíveis que carregamos. Uma obra que, em sua simplicidade aparente, revela camadas de complexidade, deixando no espectador não apenas a marca de sua potência artística, mas também um eco duradouro de suas questões universais sobre amor, culpa e a difícil arte de seguir em frente.
Ficha Técnica:
Texto: Lot Vekemans
Tradução: Mariângela Guimarães
Direção: Eric Lenate
Elenco: Cléo De Páris e Alexandre Galindo
Figurinos: Fabiano Menna
Cenário, Som, Iluminação e Programação Visual: Eric Lenate
Direção de Produção: Alexandre Galindo
Produção Executiva: Lucas Asseituno
Assessoria de Imprensa: Helô Cintra e Douglas Picchetti (Pombo Correio)
Fotos: Leekyung Kim
Realização: Teatro Estúdio