“No princípio, era o Verbo”, assim começa o Evangelho de João, ecoando em seus primeiros versículos a criação do mundo, o início de tudo, o Gênesis. Mas todo início tem um fim, certo? Fábio Prado, em Estilhaços Íntimos, reunião de poemas publicada pela Caravana Grupo Editorial, começa pelo fim, com um prólogo intitulado “apocalipse” e que funciona como uma espécie de introdução, nos dá contexto e o contexto é um mundo e um eu poético em ruínas: “o verbo morreu”.
Fábio, então, atravessa os escombros desse eu poético em colapso e que busca se refazer. Em meio a versos repletos de dor, mas também de contemplação e renovação, ele traça um percurso de ruína e reconstrução, no qual a linguagem, como uma lâmina em brasa, ao mesmo tempo, corta e cura.
Dividida em três partes, a obra nos apresenta esse trajeto atravessado pelo eu poético, uma narrativa em poemas sobre alguém que quebra e cujos estilhaços vão sendo reorganizados por meio da poesia.
Na parte I – navalha, acompanhamos a completa destruição desse “eu”, alienado e sozinho em um meio urbano desumanizante, com estímulos em excesso e ausência de afeto. O poema bolsa de valores reflete bem esse invólucro:
“recebi proventos da renda variável
será que também podem me prover afeto?
Essa primeira parte também retrata muito da despedida da infância/adolescência em face da chegada de uma vida adulta em um mundo em colapso, sem sentido e repleto de incertezas. não tive tempo para um título é um ótimo exemplo desse mundo que atropela a gente:
“hoje chegou a incerteza se era segunda
ou se, já sendo terça, era hora de colher
os pêssegos e os pomos-de-adão para quarta
até quinta estação passar despercebida
quanto saio da faria lima na sexta
logo me pego a querer deus e o capital
mas também tenho que programar o mercado
tolher em mim a fascinação e o salário
porque a areia tocou o fundo da ampulheta
e assim sábado e domingo se tornam ânsia
de repente a incerteza chegou novamente
com mais segundas, intenções e intolerâncias
grisalhas como os fios que desatam nós dois
e antes que eu tente partir a lente
a vida se v-”
Ainda nessa primeira, a mais extensa de toda obra, o eu poético precisa encarar certos “lutos”, despedidas, encerramentos de ciclos, sejam eles literais ou metafóricos, de figuras importantes que abandonam sua vida, como os amores fracassados:
“porque corajoso é aquele que aceita o fim como começo
e o meu luto nada mais é do que a procura da coragem
que nunca tivemos de viver.”.
Outro elemento que aparece e reaparece ao decorrer da obra, por sinal, é a morte e o pessimismo, sendo possível traçar um paralelo com Augusto dos Anjos, autor que escreveu na virada do século XIX para o século XX, mas que dialoga muito bem com as ruínas do mundo contemporâneo. Uma das marcas desse autor que ficou conhecido como o Poeta da morte, é a morbidez e a exploração da decomposição da matéria em seus versos, algo que também é perceptível nos poemas de Fábio Prado, como nos versos de entregue aos abutres, cujo trecho reproduzo abaixo:
“quero que a navalha perfure os nervos,
desvio na pele e carnosidades,
pele putrefata para as moscas pousarem,
depositarem seus ovos e me fazer negrume,
purulência a ponto de entojar não só os outros,
de entojar meu anjo da guarda quando vir
os vermes saindo dos meus ruídos depois
da autópsia.”
Leia também: O viver em meio aos destroços em “/um mapa das ruínas/”, de Vítor Ribeiro-Santos
Conforme a parte I, navalha, aproxima-se do fim, os poemas assumem um tom ainda mais trágico e melancólico, principalmente os dois últimos: deixarei claro que isso é um suicídio e ele se foi.
“ele se foi
aqui, não há fábio
há fragmentos de uma pessoa perdida.
não é um poeta nem um eu lírico que aqui fala.
sou Fábio ou a falta dele.
de tanto buscar amor,
achou sua própria miséria.
desculpem.
só tenho emoções confusas.
a vida fez questão de esmagar minhas pernas.
não tenho versos que me definam,
muito menos palavras que me confortem
estou livre para não ser Fábio.
não há poesia se não há quem a faça.
ele se foi e me deixou.
eu me deixei.
penso no que fábio acharia do azul.
não sei se seria um final de tarde monótono
ou uma lágrima que desce sem descer.
agora, não há como saber.
não há como reconstruir o nada.
sua poesia se foi.
fábio se foi.
ele se foi.”
Enfim, esse “eu” se desfaz, quebra, para na parte II – contando cacos recolher o que sobrou e assim, tentar recomeçar, se refazer. Há um vazio que cobre os primeiros poemas, mais curtos, como se o eu poético tateasse o mundo, uma espécie de recém-nascido que experimenta ainda a vida e suas possibilidades.
“sum
feto
fosco,
surdo.
o homem,
rés,
chão.
ser
turvo
resta.
tenra
luz
fluí.
o ar
doce
arde.
o homem
feto ̶
algo?”
Ao tatear os estilhaços desse “eu” quebrado, é como se Fábio reunisse esses cacos através do Kintsugi, técnica japonesa de reparo de cerâmicas quebradas que utiliza resina misturada a ouro em pó. As rachaduras, nesse processo, ficam visíveis, como cicatrizes. A quebra, a dor, é transformada, assim, em aprendizado, em experiência, afinal “a falha também me constitui.”.
Essa busca por novos sentidos se intensifica e ganha corpo na parte III – convalescença. O próprio título carrega a ideia de recuperação gradual, de reconstrução, como o título de um dos poemas.
Nessa última parte da travessia, o eu poético ressignifica os cacos reunidos na parte II. O mundo ganha cores, como no poema ossos de vidro. Aqui, segue um trecho da parte final:
“já tenho vida em mim.
estou iluminado e completo.
os pontos e as vírgulas mostram os interstícios,
pois a vida faz sentido com a descoberta
do arco-íris.
sou frágil,
tenho fragmentos e mais cacos,
mas há algo que desponta além de qualquer fronteira.
tenho em mim a força de um gafanhoto
a fé do meu povo
para cumprir a falta de destino
de quem vê o mundo
como ele realmente é.”
O eu poético olha para o passado, mas assume a construção de um presente e um olhar para o futuro fundado não apenas na nostalgia. Há o amadurecimento de quem passa a enxergar a quebra como parte do processo, como parte de uma vida que nem sempre terá sentido.
“nada precisa de explicação
(…)
acho que a vida nunca fez tanto sentido”
Sobre o autor:
Fábio Prado nasceu em Veneza, na Itália, em 2000, e cresceu em Campina Grande, na Paraíba. Formou-se em Letras pela Universidade Federal de Campina Grande e hoje cursa o doutorado em Linguística na Unicamp, onde também concluiu o mestrado. Sua poesia transita entre o confessional e o fragmentado, explorando o lirismo da ruína, a ironia da existência e a reconstrução do eu. Estilhaços íntimos é seu livro de estreia.