“Bruta Flor”: espetáculo expõe as feridas da repressão identitária

O espetáculo Bruta Flor narra um drama psicológico marcado por reencontros e revelações. Lucas e Miguel revisitam a história de um amor interrompido, envolto em desejo, culpa e identidade. Entre memórias, violência e espiritualidade, a peça expõe camadas de preconceito, homofobia, bissexualidade e aceitação, com delicadeza e profundidade. Uma trama intensa sobre escolhas, afetos e as consequências de silenciar quem se é.

A dramaturgia de Carlos Fernando Barros e Vitor de Oliveira constrói, de forma não linear e introspectiva, um painel psicológico intenso sobre a repressão da identidade. A estrutura fragmentada, que mescla passado e presente, espelha o próprio processo de revisitação traumática vivida pelos personagens, onde memórias, desejo e culpa se entrelaçam de modo orgânico e perturbador. O cerne da peça está no tensionamento deliberado das noções de masculinidade, usando o triângulo amoroso não como mero dispositivo, mas como campo de força para expor as rachaduras do performático social. A omissão da essência, conceito central da narrativa, é explorada não como uma escolha passiva, mas como um ato violento de autoanulação cujas consequências – a homofobia internalizada, a bissexualidade apagada e a violência – reverberam de forma devastadora na trama. A proposta se cumpre ao evitar didatismos, mergulhando com delicadeza e crueza nas camadas emocionais dos personagens, fazendo do silêncio e do não dito tão dramáticos quanto as revelações.

O elenco, formado por Leonardo Miggiorin, Valeria Silva e Fábio Bianchini apresenta uma atuação coesa e estrategicamente construída, em que as escolhas interpretativas servem diretamente à temática da repressão. A performance inicialmente incômoda de Fábio Bianchini revela-se, na verdade, um acerto intencional, encapsulando na voz altiva e na postura dura a violência de uma masculinidade que se impõe para negar a própria essência, funcionando como o pilar antagonista que tensiona toda a trama. Valeria Silva oferece solidez e intensidade necessárias ao equilíbrio dramático. No ápice, Leonardo Miggiorin domina a cena com maestria técnica, utilizando pausas precisas, uma presença física eloquente e uma camada de vulnerabilidade contida que comunica, de forma sublime, a dor do silêncio e o peso das consequências, tornando-se o coração emocional da narrativa.

A equipe técnica atua como um braço direito de Bruta Flor, traduzindo em sensações físicas o turbilhão interno dos personagens. A cenografia de Andrea Moraes, aparentemente simples, é funcionalmente genial, permitindo transições fluidas entre as temporalidades da memória sem perder a clareza narrativa, sustentando a estrutura não linear da peça. Em sintonia, o desenho de luz de Gabriel Greghi transcende a mera iluminação para se tornar uma ferramenta narrativa primordial, esculpindo o espaço, definindo atmosferas e intensificando dramaticamente as revelações e os silêncios, criando imagens tão potentes e simbólicas quanto o texto. Completando este tripé sensorial, a trilha sonora de Cida Moreira opera com precisão cirúrgica, pontuando a ação não para ilustrá-la, mas para mergulhar o público na carga emocional subjacente, seja pelo contraste ou pela ênfase, tornando a experiência imersiva e visceral. Juntos, estes elementos constituem uma unidade técnica coesa que materializa com maestria as camadas de desejo, culpa e repressão da trama.

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A direção de Marcio Rosario em Bruta Flor demonstra uma visão coesa e articulada, sintetizando com maestria todos os elementos da encenação em um todo orgânico e impactante. A condução da narrativa não linear é executada com precisão, garantindo clareza na transição entre tempos e estados emocionais, sem perder a intensidade psicológica que permeia a trama. A direção extrai performances estrategicamente construídas do elenco, onde cada escolha serve à exploração crua da repressão identitária. O maior acerto está na habilidade de dar dramaticidade igual ao que é dito e ao que é silenciado, utilizando pausas, olhares e a atmosfera técnica para expor a violência do não dito, cumprindo com profundidade e delicadeza a proposta de mergulhar nas consequências devastadoras de silenciar a própria essência.

Em suma, Bruta Flor consolida-se como um espetáculo essencial e corajoso, onde o entretenimento se firma como uma potente reflexão sobre as feridas invisíveis da repressão identitária. A encenação de Márcio Rosario harmoniza com maestria a força da dramaturgia, a entrega precisa do elenco e a inventividade da técnica, criando uma experiência visceral e poeticamente impactante. A peça não apenas expõe as consequências devastadoras do silêncio, mas ressoa como um convite urgente à empatia e à autenticidade, deixando no público a marca indelével de sua honestidade artística e emocional. Um trabalho que celebra, com rara sensibilidade, a complexidade de ser e de amar.

Serviço:
De 9 de agosto a 21 de setembro, aos sábados, às 20h30, e domingos, às 19h
Teatro Núcleo Experimental
End.: R. Barra Funda, 637 – Barra Funda
Tel.: (11) 3259-0898
Duração: 80 minutos
Classificação indicativa: 16 anos (cenas de nudez)
Capacidade: 90 Lugares
Ingressos: R$ 140 | R$ 70 (meia)
Pela internet: https://www.sympla.com.br/evento/bruta-flor/3037799
Bilheteria do teatro: duas horas antes do espetáculo
Cafeteria Disponível
Ar-condicionado
Acessibilidade

Ficha Técnica:
Dramaturgia: Carlos Fernando Barros e Vitor de Oliveira
Direção: Marcio Rosario
Elenco: Leonårdo Miggiorin, Valeria Silva e Fábio Bianchini
Direção de Movimento: Liane Maya
Direção de Arte, Cenografia e Figurinos: Andrea Moraes
Adereços: Egbert Mesquita
Design de luz: Gabriel Greghi
Trilha Sonora: Cida Moreira
Programação Visual: Danny Rodrigues
Fotos: Kim Leekyung
Making Of: Daniel Castilhos
Produção Executiva: Daniel Chiarelli
Direção de Produção: Denise Prado
Diretora Assistente: July Frediani
Produtores Associado: Valeria Silva e Leonårdo Miggiorin
Produtor Geral: Marcio Rosario
Realização: Três Tons Visuais
Coprodução: Dandara Productions
Assessoria de Imprensa: Vicente Negrão Assessoria

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