Quarto livro da escritora Jeanine Geraldo, Retratos de Mulher é uma obra de contos publicada pela Editora Urutau, em 2025.
A filósofa e pensadora Susan Sontag, em sua obra Sobre a Fotografia, reflete sobre este ato tão comum e tão corriqueiro em nossas vidas: o de produzir um retrato. Para ela, tirar uma foto é “participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa)”. Segundo a proposta da autora, toda fotografia contém dentro de si um paradoxo porque ao “cortar uma fatia desse momento e congelá-la toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo.”
Mas e a literatura, é um espelho ou um retrato da realidade? Acredito que na literatura há uma concomitância entre retrato e espelho, na medida em que, enquanto a literatura fala, ela se revela, ou seja, ao falar do outro, falamos, no fundo da gente mesmo.
Talvez, por isso, a obra Retratos de Mulher, de Jeanine Geraldo, tema da nossa resenha de hoje, toque tanto na gente: ao ir no fundo de si própria e investigar e estripar isso que se chama “ser mulher”, ela consegue capturar uma fragilidade essencial de cada um de nós.
Retratos de Mulher é uma obra de contos da escritora Jeanine Geraldo, publicada pela Editora Urutau, em 2025. Nascida em Maringa, no Paraná, Jeanine é doutora em Estudos Literários pela UFPR (2022) e professora do Instituto Federal do Paraná. Na literatura, já publicou as obras “O animal que me tornei” (2018) e “As folhas vermelhas do outono” (2020, vencedor do Prêmio Literário – Licenciamento de Obras Digitais pela Secretaria de Cultura do Estado do Paraná), e “Alcateia” (2022). “Retratos de Mulher”, então, é seu quarto livro, sendo o segundo livro de contos.
Podemos falar que a autora se insere no movimento que tem sido chamado de “boom” da literatura latino-americana feminina voltada para temas como o terror, o horror e o insólito que tem com como expoentes as argentinas Samanta Schweblin e Mariana Enriquez e que também tem laços no Brasil como as autoras Irka Barrios, Verena Cavalcanti, Paula Febbe, entre outras. Todas elas, incluindo Jeanine Geraldo, tem algo em comum: elas entenderam que o grande horror da vida não está no outro mundo, mas neste. E contam isso através de suas experiências de serem mulheres e verem o mundo através dessa sensibilidade ímpar que é a de escritora.
O primeiro conto de Retratos de Mulher, por exemplo, traz uma das histórias mais dilacerantes para o corpo feminino: o abuso infantil. O conto retrata a história de uma menina que pede ao pai de aniversário para conhecer seu trabalho. O pai é um vigia noturno de uma fábrica que passa as noites cuidando de espaços vazios, silenciosos, um cenário próprio para um conto de terror. Assim, ela vai passar uma noite neste lugar tão misterioso em sua vida e é recebida por um amigo de seu pai, um “tio” que conta histórias de terror, em especial a de uma mulher que havia se enforcado em um dos galpões. O medo toma a menina ao saber que, supostamente, seu espírito havia sido visto vagando por lá.
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A cada história que se passa diante de nossos olhos, Jeanine vai revelando outros momentos na vida das mulheres, como no conto “Lençóis Manchados de Vinho”, em que o tema é a maternidade, ou melhor, a sexualidade após a maternidade. Na história, uma mulher encara o sentimento absurdo que é colocar outro ser na vida, um ser que lhe rasga por dentro. O pior, de alguma maneira ela se sente presa a esse ser, vivendo um forte sentimento de raiva, frustração, etc. Em um determinado momento, ela trata seu filho como se fosse uma espécie de parasita que cresce dentro de seu corpo:
“Eu me vi refém daquele ser que crescia, respirava e se alimentava de mim. Tentava esconder que a cada dia eu morria um pouco para que esse outro vivesse. Quando estivesse pronto para vir ao mundo, eu teria partido. Como trens que se cruzam na estação”.
E enquanto outros viam na maternidade algo de belo e sagrado, ela dizia que:
“Não via nenhuma beleza. Era pura violência gerar um ser humano. Como você pode estar triste, você me perguntava, se a função da mulher é ser mãe?”
Essa mulher, após ser mãe, vê sua sexualidade negada pelo marido que diz que mãe não deve vestir determinada roupa e, após a chegada do bebê, os toques entre eles se tornaram “puritanos”, como se mãe só pudesse ser mãe quando fosse sagrada.
É percebendo essas violências, como ser tratada como um ser cuja única função é ser mãe, que esses retratos de mulheres vão fotografando uma questão social que está diante dos olhos de todos nós, homens, mas que muitas vezes não nos vem à consciência. Por outro lado, essas histórias parecem ser evidentes ou até banais, perpassando grande parte das mulheres. Como pode o machismo ocultar tanto essas narrativas, não?
Jeanine, porém, também atravessa sua obra de outras questões como a relação entre a vida e a morte, da gravidez e do aborto, do medo e do mar. Destaco dentre esses temas, as histórias que circulam pela metalinguagem. Nelas, Jeanine faz com que sua obra também reflita sobre seu próprio gênero, tal como ela gostaria que fosse entendido em suas histórias. Diz ela:
“Há certa beleza em observar que morte e vida são faces de uma mesma moeda. Se o pássaro não tivesse morrido, as formigas estariam famintas. O horror seria uma existência infinita. O horror é a eternidade, porque na eternidade não há sentido e sem sentido não há vida. Viver eternamente seria, assim, um não viver. A dança da vida precisa de ritmo e não existe ritmo sem movimento.”
Neste trecho, Jeanine traz um paradoxo muito comum, por exemplo, aos vampiros: sem a morte, não há a tragédia da finitude da vida, o que significa que todos os horrores são eternos. Deste modo, o verdadeiro horror não é aquilo que nos destrói a vida, mas aquilo que nos atormenta pela eternidade. A dor é sempre passageira porque se encerra com o corpo: o eterno é que é terrível.
Esse exercício de metalinguagem no interior da obra, também aparece em um conto curto chamado “Quem tem medo do escuro?” em que uma pessoa é constantemente tomada por um conto em sua cabeça. Este conto aparece “insistente e incompleto” e ela, apesar de recuperar seus mestres, Poe, Cortázar, Lovecraft e Maupassant, não consegue jamais terminá-lo. Até que se senta para escrever e começa a ouvir um click na casa. Aterrorizada, vê que as luzes começam a apagar nos cômodos: o que ela escreve, então, começa a se materializar no real. Ela escrevia para viver e ela vivia porque escrevia:
“A história se encaminhava para o final. O medo da personagem se misturava ao meu, e eu já não sabia quem era quem.”
Por fim, temos o conto que dá nome ao livro em que há uma inversão de expectativa: enquanto na maioria das narrativas estamos diante de mulheres que vivem, sofrem e contam, nesse caso, temos uma mulher, Lavínia, que observa outras mulheres.
Ao escutar a conversa delas, descobre que estão falando de uma ação judicial em que uma amiga, Ana, teria vencido. Ao olhar Ana, a personagem principal encontra nela não a vítima de uma violência ou de um abuso, tal como ela tentava retratar, mas justamente o oposto: a frieza e a manipulação de alguém que encontrou nas violências que sofre a possibilidade de se vingar. Diante do olhar dessa mulher, Lavínia, então, reflete sobre a própria condição:
“Aquele momento a fazia repensar seu próprio papel, seu próprio ‘retrato’ como mulher. O que era ser mulher afinal? Seria manipular, como Ana, e usar vulnerabilidades para conseguir o que queria? Ou viver de aparências como as outras, aceitando com superficialidade os papéis que a sociedade lhes impunha?”
A resposta para essa questão, porém, é justamente o final do conto, uma descoberta que surge após um passeio por experiências de mulheres diversas entre si, mas que têm em comum a certeza de que política e socialmente seus corpos estão a todo instante sob escrutínio da sociedade e dos desejos do poder, quase sempre ele masculino, branco, heterossexual.
Retratos de Mulher é uma obra que se debruça sobre o insólito mais real que existe. As violências diárias que não tem nome, os fantasmas de infância que nos acompanham durante a vida, as pessoas cujos sonhos foram negados e os corpos que foram esmagados, ainda que simbolicamente.
Jeanine Geraldo mostra não só domínio pleno da linguagem que trabalha, como ainda se diverte com ela, jogando como o imaginário do leitor numa ciranda entre os horizontes de expectativas e as viagens que as narrativas podem, e devem, ainda fazer.