Durante muito tempo o papel destinado às mulheres estava restrito aos afazeres domésticos e aos cuidados com os filhos. Embora nas décadas mais recentes sejam perceptíveis avanços na sociedade, cabe lembrar que a invisibilidade e o apagamento feminino eram recorrentes em todos os âmbitos, especialmente nas esferas pública e política, lugares anteriormente reservados aos homens.
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No entanto, várias mulheres romperam barreiras patriarcais, discriminações e preconceitos, e passaram a ocupar outros espaços, participando, juntamente com os homens, contra a ditadura militar, e sofrendo consequências brutais – torturas, perseguições, desaparecimentos e mortes. Por isso, ao se posicionarem como sujeitos políticos, conviviam com a dupla estigmatização tanto por irem de encontro aos padrões estabelecidos para a época quanto por fazerem oposição ao regime. Grande parte desses nomes permanecem, ainda hoje, pouco abordados ou seguem desconhecidos.
Para isso, o livro Rosas de Chumbo, de Daniela Bonafé, publicado pela Toma Aí Um Poema, em 2025, recupera e recria suas histórias. O trabalho ficcional surgiu a partir de uma pesquisa que durou mais de seis meses sobre as biografias de algumas das inúmeras mulheres torturadas e mortas ou desaparecidas entre 1964 e 1983, período da ditadura militar brasileira.
para Gastone Lúcia Brandão
“É preciso lentes para ver maior.
Aumentar vinte vezes para descobrir a meia lua em seu peito.
Aquela que a faca rasgou e que ainda corta as notícias do nosso tempo.
No jornal sobre você: só meias mentiras.
Converso com os ponteiros do relógio sem dormir e piscam pensamentos como uma luz prestes a queimar.
Quando é que vão deixar de nos matar Rosa Lúcia, nós que somos todas rosas de chumbo?
Tiro, soco, pontapé, afogamento,
corte, queimadura, puxão, escalpelamento,
arranhão, paulada, asfixia, enforcamento,
de um lado para o outro nosso corpo nunca foi nosso e nem nossas vidas.”
(BONAFÉ, 2025, p. 48-49)
Com uma narrativa híbrida alternando poemas, contos, cartas, músicas e outras formas, o livro é construído como uma espécie de mosaico em que diferentes situações vivenciadas são relatadas, dando a sensação de que cada parte remete, sobretudo, às vidas fragmentadas.
Ao dedicar um texto para cada uma dessas mulheres, a autora resgata as vozes que foram apagadas da sociedade, reescreve as lembranças dos últimos momentos de vida ou destaca algum fato marcante de suas trajetórias. Histórias que permaneceram incompletas, porque foram silenciadas, interrompidas e subtraídas pela repressão e violência do Estado.
Por isso, ao recriar suas histórias não só denuncia as atrocidades, mas impede que esses acontecimentos caiam no esquecimento, tornando-se um importante instrumento de manutenção da memória: “Aprender com o passado para não permitir a repetição do horror.” (BONAFÉ, 2025, p.12)
Num mundo em que foram relegadas à margem, são elas que reafirmam a resistência – “existimos porque somos teimosas” (p. 49); demonstram seus anseios, vulnerabilidades e fragilidades – “de um lado para outro nosso corpo nunca foi nosso e nem nossas vidas” (p. 49) , mas sem deixar de manifestarem determinação e coragem – “[…] desço de frente para que ele não se esqueça dos olhos que vai alvejar […] para ele saber que uma mulher é inteira até quando está despedaçada.” (p. 86-87)
E, ao nomeá-las como constam nos arquivos oficiais, retoma suas existências, que agora ocupam o lugar de protagonistas e não de estatísticas, ampliando a visibilidade e possibilitando que os leitores tenham uma dimensão humanizada de cada uma delas.

FICHA TÉCNICA
Autora: Daniela Bonafé
Editora: Toma Aí Um Poema(Selo Praga)
Categoria: Romance
ISBN: 978-65-985619-3-2
Formato: 14 X 21cm
Páginas: 160
Ano: 2025
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Sobre a autora

Daniela Bonafé é escritora, artista e professora de Arte, atuando também como formadora de docentes. Autora de 9 livros, dois deles traduzidos para espanhol e inglês. Possui textos publicados em diversas antologias e revistas literárias. Finalista do 4º Prêmio Literário Afeigraf em 2022, na categoria infantil. Menção honrosa do 53º Concurso de Contos e Poesias Abdala Mameri em 2023. Finalista do Prêmio Microconto de Ouro em 2023. 2º lugar no Prêmio Literário Campos de Jordão em 2023, na categoria Poesia. Finalista do 33º Concurso de Contos Paulo Leminski em 2024. Finalista do Prêmio Voo Livre em 2024, categoria Poesia. Paulistana, mãe e feminista, é militante da Educação e dos Direitos Humanos, vencedora do Prêmio Municipal de Educação em Direitos Humanos pela SMDHC em 2017. Podcaster do Jujubas e Pitocos no Spotify. Membra do Coletivo Escreviventes, articuladora do Mulherio das Letras SP capital e colunista de Literatura para as Infâncias na Revista Voo Livre