A epígrafe de um texto jamais é uma escolha arbitrária e diz mais sobre uma obra do que podemos imaginar. Ela serve para situar o leitor, direcioná-lo e indicar um sentido, uma trilha. Sendo assim, ao optar por uma citação de Atuahualpa Yupanqui e outra de Paul Valéry para abrir a reunião de contos /um mapa das ruínas/, publicada pela Mondru, Vítor Ribeiro-Santos já nos diz a que veio.

Enquanto que com Atuahualpa Yupanqui, pseudônimo do cantor, compositor e escritor argentino Héctor Roberto Chavero, chama o leitor à consciência política, com Paul Valéry, filósofo, escritor e poeta francês, Vítor adianta o tom meditativo e reflexivo que o seu texto assume.
A obra apresenta 11 textos, contos independentes, escritos ao longo de 10 anos (2014-2024). Neles, personagens sem nome em locais e tempos históricos não ditos são expostos a eventos chave, situações limite que os fazem encarar as ruínas que os cercam para além dos destroços, como um território de persistência e continuidade no qual recriam a si mesmos a partir dessas fraturas.
Guerras:
“Eu pagaria com a eternidade o custo do hoje. Eu daria cada dia para que ela vivesse no seu e no meu corpo. Mas, naquela hora, já bastavam as bombas, as canções anestesiadas, e os olhos. Para que se pudesse existir, enfim, outro.”
“Sabia que deveria me atentar aos anúncios nos televisores que nos informariam que havia uma guerra nalguma parte do planeta, possivelmente na nossa.”
Memórias:
“Eu me lembro bem de estar ali. Como se lembra de algo que aconteceu, mas que já se tornou um seixo, um calhau em algum arroio da cabeça. Como populações de cores diversas vistas sob árvores de signos e de florestas, mas que a memória em visita insiste em dizer, apenas: paisagens.”
Derrotas:
“Tua boca amargava num gosto de derrota. Uns olhos escuros pareciam duvidar de você, de que você pudesse mexer coordenadamente suas mãos. Não, é tudo em vão.”
No olho desses furacões os personagens são forçados a olharem para dentro de si e para fora, para o mundo, buscando um novo sentido em meio aos destroços e aos resíduos daquilo que já não mais existe, seja uma pessoa, um sonho, uma cidade, uma vida.

Há, na narrativa, este entrelaçamento entre o individual e o coletivo, com a História deixando sua marca em corpos e memórias.
“Aviões sobrevoavam o Pacífico. Você veio me ver. Eis aqui minha nova e derradeira casa; sou mais um dos infinitos personagens desta História. Em minúsculas, mais lealmente, como na capa: história. A história geral do esquecimento.”
“Até que acordei numa manhã de um ano ímpar, sem mais subterfúgios, sem mais notícias de Stalingrado Paris Hanói Potosí. E sem paredes, e sem muros. Os tijolos de barro retornando ao lugar de onde haviam vindo. O rádio o sonho o televisor como a sobra dos dias que naufragavam.”
Esse entrelaçamento entre experiência individual e contexto histórico, assim como a forma como ele é feito, me remeteu à Diamela Eltit, pois como no romance Jamais o fogo nunca, da autora chilena, a escrita de Vítor é subjetiva, em primeira pessoa, focada nos microcosmos dos personagens, além de também abrir inúmeras possibilidades, até mais amplas, na verdade.
O relato disforme e claustrofóbico de uma sobrevivente da ditadura militar chilena quase em forma de lamento, murmúrio, elaborado pela Diamela tem um mínimo de apresentação da biografia da personagem, onde e quando ela está inserida. O que não acontece nos textos do Vítor.
Ou seja, /um mapa das ruínas/ tem muito de intuição. De perceber, de sentir, sem que necessite explicação clara e objetiva. O primeiro texto, inclusive, já lança esse chamado: “Chegar é apenas intuir o percurso findo.”.
É preciso uma dose de entrega, seguir o fluxo narrativo, escavar, por vezes, tal qual uma dessas personagens sem nome e rosto:
“Eu seguia como se retirasse camadas, metros, quilos de pele morta, pus, sangue pisado, cabelos quebrados da casca de meu corpo.”
Porém, Vítor escreve não só sobre as ruínas, mas sobre fazer das ruínas uma casa, o que me levou à pensar em discussões atuais sobre como viver esse período histórico que nós mesmos atravessamos.
Colapso climático, ascensão do fascismo, capitalismo tardio. Chame, inclusive, como quiser, antropoceno, capitoloceno e etc, mas a realidade é que diariamente nos pegamos tomando um café de qualidade duvidosa enquanto performamos produtividade em um mundo que colapsa ao nosso redor.
Acredito, por fim, que conteúdo e forma fazem do texto do Vítor um texto com a cara do nosso tempo. Sem forma definida, com uma proposta estética focada na sugestão e na intuição. Nada é dado, nada é explícito. O tom de murmúrio, sonho, pesadelo, confusão. Mas o texto segue, nós seguimos “Posto que ser é, na melhor das hipóteses, estar sendo.”.
Sobre o autor:

Vítor Ribeiro-Santos é natural de Candeias, Bahia. Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, ganhou o prêmio Alceu Amoroso Lima pela Academia Brasileira de Letras. Além disso, publicou Pronunciar o Chão (Campo ou Bola, 2023) e Thales, ou O Desconhecimento (Minimalismos, 2024).