A peça apresenta três textos curtos do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924). “Um Artista da Fome”, que conta a história de um artista cujo trabalho é passar fome publicamente e que se sente excluído da sociedade após uma mudança cultural que desvalorizou seu ofício. “Comunicado a uma Academia”, sobre um macaco falante que relata a diversos intelectuais sua transição de animal para quase humano e como se tornou um artista de renome no teatro musical, e “Carta ao Pai”, em que Kafka escreve ao pai para expor a mágoa diante de seu autoritarismo. A montagem ainda conta com “Diante da Lei”, outro escrito na abertura do espetáculo, onde revela ao público um homem que vai até a porta da lei solicitando acesso à Justiça, sempre negado.
O trabalho desenvolvido pelo grupo Garagem 21 é de um primor excepcional. Com uma escolha estética muito bem acertada e um elenco sênior, temos um trabalho que poderia ser vinculado a Broadway, mas estamos falando de um teatro independente, tornando o trabalho ainda mais primoroso.
Ao entrar no teatro já somos impactados pelo que será apresentado. O primeiro texto, Diante da Lei, não precisa dos atores em cena para nos atravessar, a escolha do cenário e um boneco que representa uma pessoa que definhou naquele ambiente, já nos coloca em prontidão para acompanhar o espetáculo.
Na conclusão da peça fica evidente a linha narrativa escolhida pelo grupo para apresentar o trabalho de Kafka. Garagem 21 propõe uma visão das diversas faces dos sistemas de violência. Por meio dessas narrativas, a peça levanta questionamentos sobre temas como justiça, liberdade, censura, repressão, direito e democracia.

É impossível não citar a contribuição de Maria Cecília de Souza Minayo e Pothik Gosh, que enriquece a peça ao desvelar as camadas de violência estrutural e simbólica presentes nos textos de Kafka, transformando suas narrativas absurdas em reflexões agudas sobre poder e opressão na sociedade contemporânea. Maria Cecília de Souza Minayo expõe como a violência está naturalizada nas instituições, como no abandono do artista da fome ou na dominação familiar da Carta ao Pai. Enquanto Pothik Gosh decifra a dialética perversa da lei em Diante da Lei e a inclusão excludente do macaco em Comunicado a uma Academia, mostrando que a justiça e a assimilação são, muitas vezes, mecanismos de controle disfarçados. Juntos, eles ampliam o impacto político da montagem, convidando o público a reconhecer, além do absurdo kafkiano, as estruturas reais de dominação que moldam suas próprias vidas.
A atuação do elenco sênior composto por Helio Cicero, André Capuano e Pedro Conrado eleva a montagem a um patamar de excelência, equilibrando intensidade dramática e precisão técnica. Helio Cicero, como o Artista da Fome, domina a cena com uma potência vocal cortante e nuances que oscilam entre a resistência e a desesperança. Pedro Conrado, no “Comunicado a uma Academia”, impressiona pelo trabalho corporal meticuloso, transformando-se no macaco falante com uma fisicalidade que mistura animalidade e artificialidade. Já André Capuano, na “Carta ao Pai”, entrega uma performance sutil e devastadora, traduzindo a dor kafkiana em gestos contidos e uma narrativa que vai da ironia à vulnerabilidade extrema. Juntos, sob uma direção que valoriza a estética surrealista sem perder a clareza diegética, eles não apenas interpretam Kafka, mas encarnam a violência estrutural denunciada pela peça, tornando cada cena tão impactante quanto necessária.

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A cenografia de J. C. Serroni e a iluminação de Rodrigo Palmieri são elementos fundamentais na construção do universo kafkiano da peça, atuando como extensões narrativas que amplificam a atmosfera opressiva e surrealista. Serroni cria um cenário dinâmico que remete a um grande presídio, incorporando influências de Tadeusz Kantor com objetos simbólicos — como o carrinho de bebê em “Carta ao Pai” e o boneco impactante em “Diante da Lei” — que funcionam como metáforas visuais da violência estrutural. Já Palmieri trabalha a luz com precisão cirúrgica, esculpindo cada cena em quadros luminosos que alternam entre o claustrofóbico e o onírico, reforçando a dualidade entre opressão e absurdo.
A direção de Cesar Ribeiro em Trilogia Kafka se destaca por sua ousadia conceitual e precisão artística, fundindo influências do teatro de Tadeusz Kantor, da linguagem das HQs e dos desenhos animados em uma encenação que desumaniza o humano para revelar suas feridas mais profundas. Com um olhar meticuloso para cada elemento cênico — desde a gestualidade expressionista dos atores até os objetos simbólicos da cenografia —, Ribeiro evita o didatismo e opta por uma dramaturgia que atravessa o público, traduzindo o absurdo kafkiano em imagens visceralmente poéticas. Sua genialidade está em equilibrar o surreal e o político, criando um espetáculo que, sem recorrer ao realismo, expõe a violência estrutural com crueza e beleza simultâneas, transformando a dor em arte e a arte.

Trilogia Kafka, se consolida como uma das montagens mais potentes e necessárias da cena teatral contemporânea. Ao unir a força conceitual da direção de Cesar Ribeiro, a excelência técnica da cenografia e iluminação, e as performances brutais do elenco, o espetáculo transcende a adaptação literária para se tornar um espelho distorcido, porém preciso, de nossas próprias estruturas de opressão. Com uma estética que beira o surrealismo político, a peça não somente homenageia Kafka, mas reatualiza seu grito contra a violência institucionalizada, convidando o público a enxergar, por trás do absurdo cênico, as engrenagens reais que nos esmagam. Mais do que teatro, é arte como resistência — e, nisso, o Garagem 21 não apenas acerta, mas atinge a maestria.
Ficha Técnica:
Texto: Franz Kafka
Adaptação, direção e trilha sonora: Cesar Ribeiro
Atuação: Helio Cicero, André Capuano e Pedro Conrado
Cenografia: J. C. Serroni
Figurinos: Telumi Hellen
Iluminação: Rodrigo Palmieri
Visagismo: Louise Helène
Fotos: João Caldas Fº
Designer gráfico: Fabricio Síndice
Social Media: Jéssica Fioramonte
Produção executiva: Jarbas Galhardo
Direção de Produção: Marisa Medeiros
Coordenação de projeto: Edinho Rodrigues
Realização: Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, ProAC e o Fomento CULTSP
Serviço:
De 23 de Maio a 30 de Junho de 2025
Sextas, sábados e segundas 20h – Domingos 19h
Duração: 110 minutos
Classificação: 12 anos
Ingressos: R$40 (inteira) e R$20 (meia-entrada)
Venda online em https://www.sympla.com.br/
Bilheteria física (sem taxa de conveniência): Teatro do Núcleo Experimental
Horário de funcionamento: em dias de espetáculos, a bilheteria abre 1h antes do início da apresentação.
Informações: compras pela internet (com taxa de conveniência)
Capacidade: 65 pessoas