Clássico antropofágico de Oswald de Andrade, O Rei da Vela ganha remontagem
A estética kitsch aparece pela primeira vez na Alemanha, em 1860, apresentando a ideia de tornar verdadeiro algo falsificado, barato. De algum modo, a burguesia moderna se explica pelo nascimento do fenômeno, já que, na impossibilidade de ter uma obra de arte autêntica, o homem médio acumula cópias de “mau gosto”, brega e excêntrico para fazer parte da elite cultural. Em tese, “ter” servia de passaporte para “pertencer”.
Com o texto de “O Rei da Vela” em mãos, a diretora Bianca Almeida, em conjunto com o Grupo Copoiésis, aplica o kitsch à trama de Abelardo, o agiota que enriquece às custas do “sistema da casa”: corrupção, contravenção e engano. O espetáculo, que esteve em cartaz em Ubatuba, no interior de São Paulo, e passou pela capital paulista para curta temporada no Teatro Commune, apresenta figurinos propositalmente confusos, bregas e cheios de remendos, mas sofisticados à concepção da diretora, para externar não só o período em que o texto fora escrito por Oswald de Andrade – na boca do modernismo brasileiro e do Estado Novo – e sim de uma sina que nunca se encerra.

No conceito de Oswald de Andrade, engolir a cultura externa para regurgitar algo originalmente brasileiro estava na base de qualquer produção. À época, o romantismo, o parnasianismo e o realismo da literatura seguiam modelos europeus. Oswald bota tudo isso abaixo com a proposta de encontrar um modelo único, anárquico, que não pode ser categorizado como uma “mistura” somente, e sim como proposta de compreender as raízes do “jeitinho brasileiro”.
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Quando montou “O Rei da Vela” pela primeira vez, Zé Celso, diretor e fundador do Teatro Oficina, disse que a única ideologia brasileira é o oportunismo. A partir disso, Bianca, de modo seguro, atualiza essa filosofia sem descaracterizar o texto: estão presentes na sua encenação o imperialismo americano embrenhado no Brasil, que ganha impulso com a volta de Trump e a crítica ao sistema que cria miseráveis; por sua vez, a baía Guanabara do segundo ato se torna quase uma “Miami na laje”, em alusão ao modo como parte da elite cultural do país se dobra à cidade americana, apesar de não dissolver sua essência pobretona.
O escracho das maquiagens colore a influência do teatro de revista; mas, na visão da diretora, o elenco está muito mais próximo dos clowns, gênero importante na história teatral por colocar a figura do palhaço como espelho da própria burguesia.
Abelardo I (Renata Ruggieri) e Abelardo II (Pedro Duarte), inclusive, ganham nessa remontagem a dinâmica das duplas trapalhadas tão presentes nos circos. O mesmo vale para o deboche com os intelectuais, incapazes de compreender o país e da família tradicional, tão hipócrita quanto sórdida, que Abelardo I herda ao se casar com Heloísa de Lesbos (Amanda Dias Duarte).
Aliás, se Oswald usa os nomes dos personagens para expor sua falsidade interna (o “de lesbos” não disfarça a brincadeira”), inflamando o esforço para não mostrarem como verdadeiramente são, Bianca mira em outro lugar: agora, no Brasil dividido, todo mundo pode ser o que quiser, só que a falta de compreensão política, social e histórica pode criar figuras medíocres. É só ver como a sexualidade de Totó Fruta do Conde (Tuca Nunes) e João das Divas (Fernanda Maldonado) parece naturalizada em cena sem que os personagens deixem de ser kitsch.

Para levantar o volume de sua encenação, Bianca, de muito criativo, usa a trilha sonora do espetáculo como elo com a outras montagens. “Yes, nós temos banana”, de Braguinha, imortalizada por Ney Matogrosso e presente na criação de Zé Celso, por exemplo, está lá, mas acompanhada por “Lucro”, do Baiana System. Em uma cena hilária, “Secretária”, de Amado Batista, traz o Brasil atual para dentro do texto. O cantor, conhecido de maneira pejorativa por “o rei das empregadas domésticas”, tem 74 anos e se casou com uma jovem de 23 anos… Mais “rei da vela” que isso, impossível.
Mesmo com essa capacidade de atualizar sem descaracterizar, o desafio de montar “O Rei da Vela” sempre será enorme. O texto é caudaloso, anárquico, repleto de personagens contraditórios. Mas o Brasil de 1933, quando o texto foi escrito, e de 1967, data da primeira encenação pelo Teatro Oficina, mudou?
Abelardo I é um personagem que, vira e mexe, aparece na política, televisão e, agora, na internet. O ridículo, o brega e o mau gosto ainda servem de estruturas para a elite brasileira, que voa para Miami e não aceita perder seu naco. Será que nossa autenticidade vem dessa falsidade? Esta ótima versão, feita com um elenco jovem e comprometido com o texto, não nega tal interpretação, já que o oportunismo segue como nossa maior herança. Ou, como o próprio agiota sacramenta, “é o sistema da casa”.
FICHA TÉCNICA:
Abelardo I: Renata Ruggieri
Abelardo II: Pedro Duarte
Heloísa de Lesbos: Amanda Dias Duarte
Dona Cesarina: Mari Porto
Dona Poloca: Marta Regia
Pinote: Carol Mesquita
João dos Divas: Fernanda Maldonado
Totó Fruta do Conde: Tuca Nunes
Belarmino: Alex Salibi
Americano: Hudson Cunha
Narradora: Rosie
Autor: Oswald de Andrade
Direção geral e artística: Bianca Almeida
Cenário: Bianca Almeida
Confecção de cenário: Pablo Costa e Cynthia Chaves
Iluminação: André Vitor Gonçalves
Sonoplastia: Bianca Almeida
Marketing: Rosiane Noventa
Técnicos de palco: Fernanda Maldonado e Cynthia Chaves
Direitos autorais: ABRAMUS
1 comentário
Sua análise é ampla e sofisticada. Meus parabéns! Tive o privilégio de assistir às duas apresentações no Teatro Commune, pude apreciar a excelência do trabalho artístico. Além disso, me diverti com a fina ironia que permeou diversas cenas