Em tempos onde o termo neomarginal ganha as pautas na internet, acreditamos ser importante apresentar aos leitores o que seria esse novo conceito ou gênero teatral que surge. Afinal, o que é teatro neomarginal e qual a diferença com o teatro marginal e quais são alguns dos seus dramaturgos?
O teatro neomarginal é um movimento teatral contemporâneo conhecido por dialogar com o teatro marginal das décadas de 1960 e 1970 no Brasil. Ele surge em um contexto social e político diferente, marcado pela redemocratização, mas ainda com profundas desigualdades e questões sociais relevantes.
O teatro marginal brasileiro surgiu durante a ditadura militar como uma forma de resistência e expressão de vozes silenciadas. Caracterizava-se pela experimentação estética, pela crítica social contundente e pela ocupação de espaços não convencionais.
O Teatro Marginal, embora alinhado à crítica de esquerda contra o capitalismo e a ditadura, diferenciou-se do marxismo tradicional ao incorporar as influências do Maio de 68, da Primavera de Praga, do movimento hippie e da poesia beat. Esses movimentos ampliaram a visão de mundo dos artistas marginais, introduzindo a importância da liberação individual, da revolução cultural, da crítica aos costumes e da subjetividade como formas de resistência. A Primavera de Praga alertou para os riscos do autoritarismo em regimes de esquerda, enquanto a poesia beat valorizou a experiência pessoal e a marginalidade.

Essa abertura a novas perspectivas e formas de contestação resultou em um teatro mais experimental, irreverente e abrangente. O Teatro Marginal, embora mantendo a crítica social e política, adotou uma linguagem frequentemente informal, pornográfica e escatológica, distanciando-se da seriedade e do didatismo comuns em abordagens marxistas mais ortodoxas. A influência desses movimentos internacionais enriqueceu a crítica do Teatro Marginal, afastando-o de um dogmatismo estreito e impulsionando a experimentação estética e a incorporação de diversas pautas de resistência.
Já o termo “neomarginal” surgiu para designar uma nova geração de dramaturgos e coletivos que retomam o espírito transgressor e periférico do teatro marginal, mas com linguagens e preocupações atualizadas. Enquanto o teatro marginal dos anos 1970 questionava a ditadura e a cultura burguesa, o neomarginal foca em questões como racismo, LGBTQIA+fobia, violência policial, solidão e a vida nas favelas.
Os dramaturgos neomarginais brasileiros são autores teatrais influenciados pela chamada “literatura marginal” ou “literatura periférica”. Eles muitas vezes abordam temáticas urbanas e exploram frequentemente a realidade das periferias, tendo como foco temas como violência, pobreza, exclusão social, criminalidade, identidade e resistência cultural. Uma das características da suas obras é a linguagem coloquial, mais próxima da fala cotidiana das ruas, incorporando gírias, regionalismos e expressões populares. A dramaturgia neomarginal geralmente carrega uma forte crítica às desigualdades sociais, ao racismo, à violência policial e a outras formas de opressão.
Separei uma lista com os nomes de alguns dramaturgos neomarginais, que apresentam um trabalho relevante.

Aramyz
Aramyz tem uma escrita ácida, mesclando humor negro, crítica social e elementos do cotidiano periférico, consolidando-se como uma voz importante no teatro contemporâneo de resistência. Seu trabalho dialoga tanto com a tradição do teatro marginal dos anos 1970, quanto com a cena neomarginal atual.
Principais obras conhecidas:
- Vidro à Prova de Pobre: peça com diversos monólogos expõe a violência e desigualdade social através de personagens marginalizados, em uma narrativa crua e poética.
- Só Hienas Matam Sorrindo: retrata a crueldade humana e a hipocrisia social com humor ácido e violência poética.
- Estranho seria se você soubesse: semifinalista do Prêmio Jabuti 2024 na categoria Conto. Estranho seria se você soubesse, expõe a solidão e os abismos da existência urbana, mesclando realidade e delírio com a poesia marginal característica de Aramyz. Uma reflexão ácida sobre humanidade e seus desvãos.

Cidinha da Silva
Cidinha da Silva é uma escritora com uma produção diversificada que abrange contos, ensaios, crônicas e literatura infantojuvenil, além de peças teatrais. Suas obras frequentemente abordam questões raciais, de gênero e outras temáticas sociais relevantes, dando voz a personagens e experiências marginalizadas na sociedade brasileira. Essa preocupação com as margens e a utilização de uma linguagem direta aproxima sua dramaturgia do teatro neomarginal.
Principais obras conhecidas:
- Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas: uma peça que aborda a experiência da maternidade sob perspectivas não convencionais e com uma linguagem poética e forte.

Dione Carlos
A dramaturgia de Dione Carlos aborda temas que historicamente foram marginalizados e silenciados, como as experiências de mulheres e pessoas negras, a ancestralidade e a construção de narrativas decoloniais brasileiras. Essa centralidade de vozes e perspectivas periféricas pode ser associada à ideia de um teatro que ecoa as margens.
Principais obras conhecidas:
- Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalo: esta peça ganhou o Prêmio Shell e o Prêmio APCA em 2023.
- Dramaturgias do Front: livro publicado em 2017 com três peças da autora.
- Ialodês: texto escrito para a Cia Capulanas de Arte Negra e publicado na coletânea “Dramaturgia Negra” (2019).
- A Tempestade: Dione Carlos é a autora do Ato 3 da peça Améfrica: Em Três Atos, do Coletivo Legítima Defesa, que explora as confluências entre as culturas negras e indígenas no Brasil, buscando trazer à tona narrativas que foram soterradas pela história colonial. A contribuição de Dione Carlos no terceiro ato, “A Tempestade”, oferece uma perspectiva performática e multimídia para abordar essas confluências, utilizando diversas formas de expressão artística para criar uma “contra-narrativa”.

Jé Oliveira
Jé Oliveira é um dos nomes mais emblemáticos da dramaturgia neomarginal brasileira contemporânea. Dramaturgo, ator e diretor teatral brasileiro. Ele é um dos fundadores do Coletivo Negro, um grupo de teatro de São Paulo que pesquisa as representações estéticas, éticas e políticas sobre questões raciais no Brasil. Seus trabalhos frequentemente dialogam com a cultura afrodiaspórica das periferias de São Paulo, especialmente o rap e o hip hop, e dão protagonismo a artistas negros e periféricos.
Principais obras conhecidas:
- Gota D’Água {Preta}: espetáculo que lhe rendeu o Prêmio APCA de Melhor Direção em 2019.
- Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens: peça publicada que foi semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura em 2019 e ganhou o 6º Prêmio Questão de Crítica.
- Participação no livro Negras Dramaturgias com o Coletivo Negro.
- Pai contra Mãe ou Você está me Ouvindo?: Adaptação livre de um conto de Machado de Assis, com estreia em 2025.

Jhonny Salaberg
Jhonny Salaberg é um dramaturgo à margem do neomarginalismo, com obras que dialogam fortemente com o movimento, mas também transcendem suas fronteiras. Sua escrita mistura violência urbana, poesia negra e ritualismo ancestral, criando uma estética única que bebe do neomarginal sem se prender a seus códigos mais literais.
Principais obras conhecidas:
- Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã: esta peça aborda as mortes da população jovem, negra e periférica, sendo considerada uma das suas obras mais significativas e premiadas. Foi publicada na antologia “Dramaturgia Negra” da Funarte e eleita a melhor peça de 2018 pela Folha de S.Paulo.
- Mato Cheio: peça publicada, que integra uma pesquisa sobre o corpo negro em fuga e as estratégias de sobrevivência.
- Parto Pavilhão: obra mergulha na violência obstétrica e no racismo estrutural, expondo o corpo negro como território de dor e resistência.
- Tá pra Vencer: a peça retrata com humor e linguagem popular, o impacto do racismo estrutural, excesso de trabalho e pressão por produtividade na saúde mental da população negra periférica.

Luiza Romão
Artista multifacetada, atuando como poeta, atriz e slammer. Sua formação inclui a Escola de Arte Dramática da USP, onde teve contato com o teatro clássico.
Sua obra Também guardamos pedras aqui, é uma dramaturgia completa da Ilíada, apresentando características que dialogam com temas e estéticas contemporâneas, como a reinterpretação de clássicos sob uma perspectiva feminista e a discussão sobre violência e marginalização na literatura ocidental. A peça utiliza a linguagem do spoken word e elementos performáticos.
Principais obras conhecidas:
- Também guardamos pedras aqui: Este livro de poemas, que também se tornou uma performance teatral e uma série de videoarte, é uma reinterpretação da Ilíada de Homero. Venceu o Prêmio Jabuti de Livro do Ano e Livro de Poesia em 2022. A dramaturgia discute a fundação da literatura e do teatro ocidental a partir de uma perspectiva feminista, recuperando figuras femininas apagadas da historiografia oficial e abordando os estratagemas do patriarcado e do sistema colonial.
- Sangria: Um livro bilíngue (português-espanhol) com 28 poemas que compõem um ciclo menstrual, e que já ecoava personagens femininas da mitologia grega.
- Nadine: Uma história de detetive narrada em versos, que flerta com o romance noir e aborda a discussão política em torno do feminicídio.

Lourenço Mutarelli
Embora seja mais conhecido por seus romances e histórias em quadrinhos, as peças teatrais de Mutarelli também exploram temas urbanos, personagens à margem da sociedade e uma linguagem crua e direta.
Principais obras conhecidas:
- O Teatro de Sombras: reúne suas peças teatrais, demonstrando sua visão particular do universo dramático.
- Erre de Rosto: uma das peças incluídas em “O Teatro de Sombras” e também publicada separadamente.
- O Natimorto – Um Musical Silencioso: uma peça que também foi adaptada para o cinema.

Mario Bortolotto
Apesar de sua longeva trajetória com o teatro marginal, Bortolotto é considerado um dramaturgo com forte ligação com o teatro neomarginal. A Enciclopédia Itaú Cultural o descreve como o “representante contemporâneo mais próximo ao universo do autor Plínio Marcos”, conhecido por sua linguagem cáustica e direta e por retratar personagens à margem da sociedade. Suas obras frequentemente exploram temáticas urbanas, a violência e a exclusão social.
Principais obras conhecidas:
- Nossa Vida Não Vale Um Chevrolet: vencedora do Prêmio Shell de melhor texto em 2000, é frequentemente citada como um dos trabalhos mais emblemáticos de Bortolotto. Com uma linguagem crua e direta, a peça retrata o cotidiano de uma família da periferia após a morte do pai, abordando temas como dificuldades financeiras, relações familiares complexas e a busca por sobrevivência.
- A Frente Fria que a Chuva Traz: a peça mergulha em atmosferas urbanas e personagens em conflito. Bortolotto costuma explorar as relações interpessoais de forma intensa e realista, expondo as camadas de seus personagens em situações-limite.
- Homens, Santos e Desertores: esta peça demonstra a habilidade de Bortolotto em criar diálogos afiados e personagens marginalizados com profundidade. A trama mergulha na masculinidade fraturada, onde santos e pecadores se confundem. Através de diálogos cortantes e situações absurdas, a peça expõe a violência velada, a fé distorcida e a fuga de si mesmo – um retrato cru do homem brasileiro entre o altar e o abismo.

Maria Shu
Dramaturga cujas obras apresentam narrativas com forte carga social e personagens que vivem em contextos periféricos, o que pode se aproximar da estética neomarginal.
Principais obras conhecidas:
- Cabaret Stravaganza: espetáculo que explode convenções, unindo o grotesco e o sublime num cabaré de excessos e sobrevivência humana.
- Leoa na Baia: monólogo visceral onde a mulher-animal luta contra jaulas sociais, entre rugidos e silêncios ensanguentados.
- Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus: o monólogo é um grito existencial que mistura sacralidade e revolta, onde a morte confronta as injustiças da vida com poesia marginal.

Renata Carvalho
Atriz, dramaturga e ativista trans, tornou-se uma das vozes mais importantes desse movimento. Sua obra e atuação como artista ativista pela representatividade trans no teatro podem ser associadas à perspectiva de dar voz a vivências historicamente marginalizadas.
Sua obra mais conhecida, “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” (original da escocesa Jo Clifford), que ela adaptou e protagonizou no Brasil, é um exemplo da estética neomarginal pela subversão de narrativas hegemônicas (a figura de Jesus como uma mulher trans) e pelo corpo político (a presença de uma atriz trans em cena como ato de resistência).
Principais obras conhecidas:
- Dentro de Mim Mora Outra (peça solo, 2012): nesta peça, Renata Carvalho compartilha sua própria história e experiência como travesti.
- Manifesto Transpofágico (peça e livro, 2019): esta obra apresenta a história do corpo travesti em um monólogo, explorando a historicidade e a identidade de sua corporeidade. O livro foi publicado em edição bilíngue (português e inglês) e também conta com versões em espanhol e francês.