O cinema francês parece ter reencontrado seus clássicos. Nos últimos anos, foram lançados vários filmes derivados, inspirados ou adaptados a partir do texto de Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas – variando em nível de qualidade -, e a grande obra do autor francês, O Conde de Monte Cristo, também recebeu, só no ano passado, um filme – terrível – e uma série – excelente. Com as duas maiores obras do grande autor best-seller francês já contempladas, os cineastas do país se voltam agora para seu contemporâneo mais filosófico – Victor Hugo e, especificamente, Os Miseráveis – e seu grande protagonista, Jean Valjean.

A conhecidíssima saga de Jean Valjean, um ex-prisioneiro que muda de identidade e foge de sua condicional para escapar do estigma de sua condição, sendo perseguido pelo Inspetor Javert enquanto ascende e cai na complexa sociedade francesa do século XIX, se envolvendo em uma revolução e sendo confrontado com diversas faces da miséria humana no processo, já foi adaptada para o cinema e a televisão diversas vezes – mais recentemente, em uma série da BBC, em um filme musical em 2012, e em uma terrível mas conhecida adaptação com Liam Neeson na década de 90. De maneira geral, já foi bem representado nas telas, embora seu tamanho e densidade tornem uma adaptação perfeitamente fiel uma impossibilidade técnica e prática. Assim, é refrescante ver que os franceses tiveram bom senso – algo do qual essa autora já não esperava após algumas das adaptações de clássicos franceses citadas no início desse texto, dentre outras ofensas – e decidiram não se envolver diretamente nessa tradição – ou encarar o hercúleo desafio postulado por Hugo e suas 1.500 páginas de reflexões sobre justiça, amor e sofrimento. Pois o filme que está sendo produzido não é uma adaptação de Os Miseráveis como um todo – mas apenas de suas primeiras 100 páginas.
A palavra “prequela” faz muitos atualmente se encolherem – com bom motivo. Nas últimas duas décadas, uma miríade de filmes se passando antes de histórias amadas e apresentando a origem de vilões, protagonistas e mundos inteiros tem sido lançadas, com variantes níveis de sucesso. Entretanto, essa prequela em particular será firmemente ancorada no primeiro “livro” do romance de Hugo, talvez voltando um pouco no tempo para representar a origem de Valjean – um podador de árvores que, vendo a irmã e os sete sobrinhos passando fome, decide roubar um pão e acaba condenado à 19 anos de trabalhos forçados por seu crime. O filme mostrará a saída de Valjean das galés após cumprir sua pena, sendo confrontado com a dura realidade que aguarda ex-condenados – o preconceito, a falta de emprego, a desintegração com a sociedade – e a inevitável queda na criminalidade mais uma vez, quando Valjean é acolhido por um generoso bispo e, em desespero, rouba a prataria dele. Valjean é recapturado e sabe que, sendo um repetido ofensor, receberá uma pena perpétua; entretanto, o bispo decide salvá-lo, testemunhando de que os objetos de prata tinham sido presenteados, e não roubados. Isso permite que Valjean fique livre, e opera uma imensa transformação em sua alma, que culmina em sua decisão de se tornar um fugitivo e mudar de identidade para começar sua vida do zero como um homem piedoso.

O filme – nomeado simplesmente “Valjean”, em homenagem ao protagonista – será trazido para as telas por Éric Besnard, diretor francês do filme “Delicieux”, que se passa no século XVIII, e começou a ser filmado em 14 de Janeiro desse ano no sul da França. Com um orçamento modesto -7 milhões de euros – e levando em consideração o escopo da história, o filme incluirá diversas cenas exteriores gravadas em locação, com ênfase na natureza, seguindo o exemplo de outros filmes de Besnard. O papel principal será interpretado pelo francês Gregory Gadebois, que já trabalhou com Besnard no filme “Louise Violet”, também uma obra de época que se passa no século XIX. Outros nomes confirmados no elenco são Bernard Campan no papel do bispo de Digny, e Isabelle Carré e Alexandra Lamy como a irmã e a empregada do bispo.
A distribuição está a cargo de um label de Federation Studious, Ginger and Fed, encabeçado por Sabine Chemaly. A produção ficou à cargo da Radar Films, um selo da Mediawan – produtora das adaptações de O Conde de Monte Cristo de 2024, e também de algumas das mais recentes versões de Mosqueteiros através do selo Chapter-2 – encabeçado por Clément Miserez e Matthieu Warter, em co-produção com a France 3 Cinéma. A Radar Films é responsável por filmes de sucesso na França, como a franquia “Belle et Sebastien” e o filme “On The Wandering Paths” com Jean Dujardin. A distribuição local será pela Warner Bros França. Outros selos ligados à produção incluem Ciné+, OCS, HBO Max, Entourage e Cinécap. A distribuição internacional ainda não está definida, mas se seus predecessores forem alguma indicação, compradores do mundo inteiro provavelmente estarão interessados.
Sabine Chemaly, em entrevista à Variety, declarou que o filme vai mostrar “a transformação de Valjean de um criminoso endurecido em um homem bom e um herói após seu encontro pivotal com um bispo benevolente”. Ela descreve o filme como uma “história de origem” de Valjean e de sua “metamorfose”. “Como os outros filmes de Eric Besnard, como Delicieux e Louise Violet, “Valjean” tem uma dimensão humanística e lida com redenção”, diz Chemaly.
Toda a história central se desenvolverá ao redor do encontro entre Valjean e o Bispo, e a noite que o primeiro passa na casa do segundo. O clímax da narrativa está no roubo da prataria e na mentira que o bispo conta para salvar Valjean das galés. “Esse ato de bondade do bispo é um ponto de virada para Jean Valjean, já que mostra para ele que ainda há bondade no mundo. Ele começa a questionar as próprias escolhas e a ver que há outro caminho para ele. O filme segue os passos que levam Jean Valjean a se tornar o homem que ele sempre esteve destinado a ser, um bom homem que quer ajudar os outros”, pontuou Chemaly.

Embora não seja nem de longe uma das partes mais cheias de ação da história de Hugo, essas primeiras cem páginas são, com certeza, algumas das mais filosoficamente densas e relevantes para discussões atuais sobre justiça, miséria, sofrimento humano, religião e espiritualidade, o papel do Estado, a força do Direito, o sistema carcerário e a diferença entre o que é legal e o que é certo. Essa autora tem particular amor pelo capítulo 7, “O interior do desespero”, que certamente será abordado. Nele, Valjean “constitui-se em tribunal” para julgar à si mesmo, à sociedade que o tornou criminoso e ao Estado que permite uma extrapolação tão desproporcional de uma pena que torna-se, ele próprio, perpetrador de um crime. Aqui vão alguns trechos do capítulo, como traduzidos na edição da Martin Claret:
“[…] Fora ele o único a proceder mal em sua fatal história? Antes de tudo, não era uma coisa grave que um trabalhador como ele não tivesse trabalho? Que um homem laborioso como ele não tivesse o que comer? E então, confessado o erro cometido, o castigo aplicado não havia sido feroz e exagerado? Não houvera maior abuso por parte da lei na aplicação da pena do que por parte do culpado na falta? Não houvera excesso de peso no prato da balança que contém a expiação? O excesso do castigo não seria a aniquilação do delito, resultando na inversão da situação, o erro do delinquente sendo substituído pelo erro da repressão, fazendo do criminoso a vítima e do devedor o credor, e pondo definitivamente o direito do lado de quem o violara? Aquele castigo, complicado por sucessivos agravos devido às tentativas de evasão, não seria um tipo de crime da sociedade contra o indivíduo, um crime que recomeçava todos os dias, um crime que durava dezenove anos?
Perguntou-se se a sociedade humana podia ter o direito de fazer sofrer igualmente todos os seus membros, ora com uma incompreensível imprevidência, ora com sua impiedosa previdência, e de manter indefinidamente um infeliz entre uma falta e um excesso, falta de trabalho, excesso de castigo.
Se não era exorbitante que a sociedade tratasse precisamente desse modo seus membros menos contemplados na repartição dos bens que faz o acaso e, em consequência, os mais dignos de consideração.
[….]
A cólera pode ser absurda e intensa; podemos nos irritar sem razão, porém, só nos indignamos se sentimos que, de alguma forma, temos razão, e Jean Valjean sentia-se indignado.
E, ademais, a sociedade humana não lhe fizera não mal; ele nunca conhecera senão seu aspecto irado, chamado por ela de justiça, que mostra àqueles a quem toca. Os homens nunca se aproximavam, a não ser para maltratá-lo. Todo contato com eles havia sido um golpe. Nunca mais, desde sua infância, desde sua mãe, sua irmã, nunca mais encontrara uma palavra amiga, um olhar benévolo. De sofrimento em sofrimento, chegou, pouco a pouco, à convicção de que a vida é uma guerra; guerra em que o vencido era ele. A única arma que possuía era seu ódio. Resolveu afiá-la na prisão, e leva-la consigo quando fosse embora. […]
Em certos casos, a instrução e a luz podem servir de incremento ao mal.
É triste dizer, mas, após ter julgado a sociedade que causara seu infortúnio, julgou a Providência que criou a sociedade, e condenou-a também.
Assim, durante os dezenove anos de tortura e escravidão, aquela alma elevou-se e degradou-se ao mesmo tempo. Por um lado, nela entrou luz, por outro, trevas. Jean Valjean não era, como se viu, de natureza má. Quando entrou para as galés, ainda era bom. Ali condenou a Providência e sentiu tornar-se ímpio.”.
Esses são apenas alguns relances de toda a beleza, peso e brilhantismo da escrita de Hugo e da reflexão por ele sugerida logo no início de sua narrativa – questionamentos que servem à audiência hoje como serviram um século e meio atrás. São os sinceros votos dessa autora que o filme consiga trazer essas importantes questões à tela da melhor maneira possível.