O espetáculo Névoa é uma adaptação do texto From White Plains (2012), de Michael Perlman, que mergulha nas complexas consequências do bullying no ensino médio e seu impacto duradouro na vida dos envolvidos. A trama se desenrola quando Dennis Sullivan, um homem gay, ganha um Oscar por um filme sobre o suicídio de seu melhor amigo, Mitchell Cole, que ele acredita ter sido resultado de bullying homofóbico persistente. Em seu discurso de aceitação, Dennis nomeia Ethan Rice como o principal agressor. A partir desse ponto, a peça explora as reações e consequências dessa acusação pública. Ethan, agora adulto, alega não se lembrar do bullying e se mostra surpreso e confuso com a acusação. A peça levanta questões importantes sobre memória, responsabilidade e a possibilidade de redenção.
Névoa é uma peça contemporânea que ilustra como as experiências negativas na adolescência podem moldar profundamente a vida adulta, tanto para as vítimas de bullying quanto para os agressores, além de questionar de onde termina a justiça e onde começa a vingança, e se a vingança traz a verdadeira cura.
A dramaturgia de Névoa é construída sobre um jogo de espelhos: enquanto Dennis busca reparação pública, Ethan, o acusado, se agarra ao esquecimento como defesa. A peça evita respostas fáceis, deixando o público dividido entre a empatia pela dor de Dennis e o incômodo questionamento: até que ponto um erro do passado define quem somos? A ausência de flashbacks é uma escolha arriscada, mas eficaz – o passado só existe nas palavras (e nas lacunas) dos personagens, reforçando a fragilidade da memória.

A direção de Lavínia Pannunzio, bebe do teatro essencialista de Stanislavski: nada sobra em cena além do necessário. Stanislavski, no início de sua carreira, ao buscar uma metodologia pedagógica de atuação, adaptou Um Mês em Campo de Ivan Turguêniev, com poucos elementos, onde focava na atuação, e ao assistir à adaptação dirigida por Lavínia Pannunzio, me senti nessa concepção teatral. Névoa é uma aula de teatro digna de nomes como Stanislavski, pois o espetáculo se apoia em elementos básicos do teatro que são: atuação, luz e atmosfera. Isso não a torna uma peça mediana, pelo contrário, reduz a quantidade de elementos desnecessários, focando no que é importante para o público, a dramaturgia e a atuação, permitindo assim que nos conectemos com a história.
Em termos de atuação temos dificuldade de escolher um bom intérprete, pois todos estão ótimos em cena, sendo a escolha do elenco impecável. Formado por quatro “Fes”, temos Felipe Hintze, Felipe Ramos, Fernando Billi e Fernando Vitor, no elenco. Billi, tem o desafio de interpretar Ethan Rice, e executa muito bem o seu papel, chegando a ser verborrágico de tanto texto que o personagem possui, mas apesar do ritmo da peça, sua atuação está equilibrada, apresentando um trabalho consistente, e com muitas camadas.
Ramos, como Dennis Sullivan em contraponto a Ethan, consegue gerar o desconforto necessário, apresentando sua angústia e mágoa com todas as nuances de quem ganhou voz para se defender. Hintze, além do seu carisma em cena e sua precisão técnica, apresenta uma doçura e uma delicadeza de um parceiro tão necessário para a acompanhar a dor de Sullivan. Vitor se destaca pelo trabalho de corpo, ao gerar certa rigidez frente ao amigo que o incomoda. Vale destacar também que Felipe Hintze e Fernando Vitor, em papéis de apoio, cumprem bem a função de espelhos: um oferece afago, o outro, resistência. A química entre os quatro transforma cada cena em um duelo de narrativas.

Névoa não é apenas uma peça sobre bullying – é um espelho quebrado, onde cada fragmento reflete uma versão diferente da verdade. Ao recusar respostas fáceis, a montagem nos obriga a confrontar perguntas incômodas: o que pesa mais, a intenção ou o dano? Até que ponto a justiça reparadora se confunde com a vingança? E, sobretudo, é possível seguir em frente quando o passado insiste em não passar?
Lavínia Pannunzio e seu elenco brilhante – especialmente Fernando Billi e Felipe Ramos, em performances que oscilam entre a negação e a angústia – nos entregam um teatro essencial, cru e necessário. A opção pelo minimalismo não é apenas estética, mas ética: ao descarnar a cena, revelam que o verdadeiro drama não está no que é dito, mas no que ecoa nos silêncios.
Névoa permanece. Como a névoa do título, ela não se dissipa quando as luzes se acendem. Fica pairando em desconforto que lembra: o preço do esquecimento é sempre pago por alguém, e esse alguém, afinal, poderia ser qualquer um de nós.
Ficha Técnica:
Texto: Michael Perlmann
Tradução: Jorge Minicelli
Direção: Lavínia Pannunzio
Elenco: Felipe Hintze, Felipe Ramos, Fernando Billi E Fernando Vitor
Assistência de Direção: Mariana Leme
Cenografia: Mira Andrade
Figurinos: Felipe Hintze
Iluminação: Aline Santini
Sonoplastia: Rafael Thomazini
Fotografias: Leekyung Kim
Programação Visual: Deko Melo
Captação de Imagens: Rafael Thomazini
Redes Sociais: Vitor Julian
Operação de Luz: Claudio Gutierres
Técnico de Palco: Sergio Sasso
Assessoria de Imprensa: Vicente Negrão Assessoria
Assistência de Produção: Vitor Julian
Direção de Produção e Administração: Maurício Inafre
Produção: Uma Arte Produções Artísticas
Revisado por: Lia Petrelli