O Teatro do Incêndio traz de volta um de seus maiores sucessos: o espetáculo São Paulo Surrealista – Corpo Antifascista. A montagem é um ritual teatral dirigido por Marcelo Marcus Fonseca, que mergulha no surreal para retratar símbolos e fantasias de São Paulo. O espetáculo é uma ode à cidade e aos seus personagens, confrontando, em um jogo de imagens sobrepostas, as contradições e fantasias da metrópole.
Grandes obras teatrais, muitas vezes, têm uma combinação de detalhes e símbolos, e São Paulo Surrealista não foge dessa regra. A primeira imagem que me marca, ao permitirem a entrada no teatro, é Marcelo Marcus Fonseca, diretor, dramaturgo e ator do espetáculo, com uma placa no pescoço escrita “Esperando Artaud”. Naquele momento, eu não tinha ideia do significado dessa placa, mas ela com certeza me instigava, porque Antonin Artaud teve uma relação intensa e conturbada com o teatro, e com o surrealismo, não foi diferente.

Com uma ousadia que beira o ritualístico, São Paulo Surrealista se impõe como um espetáculo que não apenas representa, mas incendeia a alma da metrópole, fundindo crítica social e poesia em uma dramaturgia tão fragmentada quanto a própria cidade que retrata. A referência a Artaud, com o diretor Marcelo Marcus Fonseca portando a placa “Esperando Artaud”, não é mera provocação, mas um manifesto estético que convoca o espectador a um teatro de confronto, onde o surrealismo não é apenas estilo, mas ferramenta política.
A escolha por abordar temas como a epidemia de Oxi em formato musical e a resistência feminina é arriscada, mas funciona: a crueza dos versos, quase ecoando Elza Soares, choca e comove, evitando o didatismo fácil sem perder a potência da denúncia. Se, em alguns momentos, a montagem parece sobrecarregada de símbolos, quase como se a cidade fosse reduzida a um caos de imagens, é justamente essa densidade que a torna tão necessária. Aqui, a dramaturgia não se contenta em narrar: ela perfura, desconforta e, como um espelho quebrado, reflete São Paulo em todas as suas fissuras.
O elenco de 26 artistas não apenas compõe a peça, mas encarna a própria essência fragmentada e pulsante de São Paulo, transformando o palco em um corpo coletivo que respira, grita e resiste. Marcelo Marcus Fonseca estabelece, desde a entrada, um pacto de radicalidade com o público. Seu desempenho é um convite ao teatro como ato político, onde a presença cênica ultrapassa a representação e se torna manifesto.
Amy Campos destaca-se por sua fisicalidade visceral, moldando uma figura marginal que parece emergir das sombras da cidade, enquanto Isabela Alonço domina o palco com uma entrega textual que é tanto poesia quanto um grito esculpido em ossos. Livia Melo, como a espírito-guia Pagu, rouba cenas com uma energia anárquica e divertida, lembrando que a rebeldia também pode ser alegria, e que a arte é arma. A banda, entrelaçada à narrativa, não é mero acompanhamento, mas personagem ativa, amplificando o clima de delírio e urgência. Juntos, eles não atuam: eles incendeiam.
A cenografia e a iluminação de São Paulo Surrealista são elementos fundamentais para construir a atmosfera densa e fragmentada que espelha a própria essência da metrópole retratada. A mistura de grafites, pichações e luzes frias cria um visual urbano e marginalizado, reforçando a crítica social e a estética surrealista proposta pela peça. O acúmulo de pessoas em cena, aliado a essa ambientação, evoca o caos e a pulsação da cidade, transformando o palco em um organismo vivo e multifacetado.

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São Paulo Surrealista – Corpo Antifascista não é apenas um espetáculo, mas um manifesto cênico que materializa as ideias mais urgentes de Artaud em O Teatro e Seu Duplo: um teatro que não representa, mas age; que não diverte, mas devasta. Como propunha o poeta francês, a montagem do Teatro do Incêndio transcende a mimese para se tornar um ritual de confronto, onde a cidade, com suas feridas e delírios, é esquartejada em cena.
A placa “Esperando Artaud” não é acidental: é um chamado ao teatro da crueldade, onde a linguagem se rompe em gritos, corpos e luzes queimantes, e onde o público é arrastado para além da contemplação passiva. Se a peça, como São Paulo, às vezes parece um caos de símbolos, é porque ela recusa a ordem opressora que tenta domesticar a arte. Aqui, o palco é órgão vital — um duplo sangrento da metrópole que, longe de ser espelho, é faca. E, como todo teatro verdadeiramente revolucionário, não oferece respostas: incendeia perguntas. Marcelo Marcus Fonseca e seu elenco não esperam Artaud, eles o encarnam, provando que, meio século depois, o grito artaudiano ainda ecoa, especialmente em uma cidade que, como São Paulo, vive em permanente estado de colapso e reinvenção.
Espetáculo: São Paulo Surrealista – Corpo Antifascista
Com: Cia. Teatro do Incêndio
Roteiro e direção geral: Marcelo Marcus Fonseca
Elenco: Josemir Kowalick, André Pottes, Amy Campos, Marcelo Marcus Fonseca, Isabela Alonço, Livia Melo, Sabrina Sartori, Mariana Peixoto, João Paulo Villela, Anna Bia Viana, Bruno Macedo, Thauany Mascarenhas, Camilo Guadalupe, Sabrina Rodriguez, Bruno Vizzotto, Ana Ferrari, Stefanie Araruna, João Victor Silva, Giovanna Garcia, Enzo Ferraro, Fiore Scheide, Vyvy Vanazzi, Thamiris Rocha e Joviana Venture.
Direção Musical Original: Wanderley Martins
Iluminação: Rodrigo Sawl
Figurinos: Sabrina Sartori
Música ao Vivo: Xantilee Jesus, Bruno Vizzotto e Ricardo Martins
Fotos: Kym Kobayashi
Assessoria de Imprensa: Eliane Verbena – Verbena Comunicação
Produção e realização: Cia. Teatro do Incêndio
Teatro do Incêndio – @teatrodoincendiooficial
Rua Treze de Maio – Bela Vista/SP – Tel: (11) 2609-3730
Estreia: 31 de maio
Temporada: sábados e domingos às 20 horas – Até 15 de junho
Ingressos: R$ 60,00 (meia: R$ 30,00) – Ingressos Sympla
Aceita dinheiro
Bilheteria: 1h antes da sessão
Gênero: Surrealismo – 70 min – Classificação: 18 anos
Estacionamento em frente ao teatro