Eu queria ter conhecido Pagu há mais tempo, e acho que conheci “de outros carnavais”, com todo o descompasso que existe nesta expressão. Antes de ler sobre Pagu, ouvi sua autobiografia e agora finalmente encontrei estes cadernos, repletos de sua escrita, mas principalmente de sua essência.

A professora Lúcia Maria Teixeira, mestre e doutora em Psicologia da Educação, concatenou em Os Cadernos de Pagu: Manuscritos Inéditos de Patrícia Galvão (2023), alguns textos nunca compartilhados, contando com a colaboração de Geraldo Galvão Ferraz e Rudá Andrade, filhos desta escritora que amava o mar.
O livro conta com uma apresentação da professora Lúcia Maria Teixeira, na qual ela ressalta uma “urgência de tempo” própria de Pagu e que a tomou de assalto em sua trajetória com a realização deste trabalho de preservação da memória e na concretização de diversas produções artísticas e culturais espalhadas pelo Brasil e pelo mundo. Pagu parece viver em um tempo diferente.
Durante esta breve, mas completa apresentação, a organizadora conta um pouco da trajetória realizada pelos manuscritos encontrados em Os Cadernos de Pagu, como aves que gorjeiam ao chegar em seu destino. Escritos que vieram do exílio, do cárcere e de uma vida intensa, que perpassa pelos amores e pelas desilusões.
Devidamente apresentados, os primeiros escritos de Pagu, referem-se ao ano de 1929, quando Patrícia reuniu textos e desenhos para presentear Tarsila do Amaral como prova da sua admiração, marcando também o início do seu romance com Oswald de Andrade.
“1.
Meu amor. Eu havia prometido a mim mesma nunca amar a ninguém.
Encontrei-te em minha vida.
Vil, desprezível, sórdido, infame.
E por sua vileza, por sua infâmia, por sua covardia, por minha
loucura
Eu juro que te amo” (p. 20)
Os manuscritos de Pagu nos apresenta uma Patrícia Galvão que ainda pulsa em sua urgência. Podemos sentir ao ler estas paginas um calor que não nos conforta, mas nos movimenta.

Entre os anos de 1931 e 1933, Pagu escreveu seu livro Parque Industrial (1933) de maneira “praticamente artesanal, limitada e clandestina”, inteiramente patrocinada por Oswald de Andrade.
Pagu é uma pioneira em diversos aspectos, publicando Parque Industrial, primeiro romance social proletário brasileiro, assim como, foi a primeira mulher presa política do Brasil. Nestes manuscritos ela retrata toda sua revolta, faz denúncias sobre a exploração das mulheres em decorrência da sua condição social e de gênero. Sob a perspectiva racial, escreve:
“Mulata!
Por que nascera assim? Mas era tão bonita. Quando se pintava então! O diabo era a cor. Por que essa diferença? Seria sempre assim? O filho era dele também. E se saísse assim com sua cor de rosa seca… Por que os pretos têm filhos?” (p. 46)
A sinceridade com a qual Pagu escreve nos impressiona e pode assustar leitores mais desavisados quanto a crueza com a qual ela nos apresenta a realidade que percebe. E é possível compreender isso a cada página que encontramos ora fac-símile, ora transcrições.
Ela não consegue esconder, por exemplo, sua insatisfação quando o partido a impede de realizar seu trabalho intelectual, obriga a fazer serviços duros para sobreviver e impede que ela continue se relacionando com seu filho Rudá e Oswald.
Sua revolta é expressamente sentida nos desenhos e nas contas que realiza ao mesmo tempo, em que rascunha legíveis e ilegíveis descontentamentos.
Em meio ao desespero e as inquietações, Pagu nos presenteia com Microcosmo – Pagu e o homem subterrâneo. Escrito em 1939, quando nossa heroína se encontra presa e compartilha as marcas profundas do cárcere.
“6
Não estar presa a nenhuma lei.
Ser nada. Não ser.
Por que não destruir o objeto?
Por que continuar presa à vida afetiva?
Por que depender de minha necessidade?” (p. 186)
Ao ler estes versos, sinto a desesperança contida em cada letra e contemplo a preciosidade de ler Patrícia Galvão e ter vontade de estar perto; de abraçá-la com ternura e de dizer-lhe que esta dor não passa, mas que pode contar comigo. Uma solidariedade estranha que se apossa de mim, e me faz compreender que há um sentimento coletivo, que somente a escrita de si consegue contemplar.
Neste compilado, contamos com os manuscritos da peça teatral “Fuga e Variações“, além de cartas inéditas de Pagu enviadas para Oswald e para seu filho Rudá. No gênero epistolar, ela se apresenta mais claramente, enquanto transita pelo mundo.
A organizadora compõe ao final do livro uma cronologia para que as pessoas leitoras possam entender os caminhos trilhados por Pagu, desde seu nascimento, em 9 de junho de 1910, até sua morte em 12 de dezembro de 1962.
Finaliza com fotos extraordinárias de um tempo em que Pagu descreveu e legendou suas próprias fotos. Contemplamos sua beleza e seu olhar profundo. Buscamos seu descontentamento e ficamos sem palavras diante da sua força e convicção.
O dia 9 de junho é o dia do nascimento de Patrícia Rehder Galvão. Esta que morreu e renasceu Pagu, em 1928, após ser re-batizada por Raul Bopp. Esta, que morreu em 1962 após renascer inúmeras vezes de suas próprias angústias e que ainda hoje vive em seus manuscritos e nos corações de quem percebe sua coragem.
Pagu, PRESENTE!
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