Poucas imagens são tão constantes na história do cinema quanto a de um trem. A locomotiva marcou presença nos primórdios da sétima arte com A Chegada de um trem na estação, dos Irmãos Lumière, na época do cinema mudo, com A General, de Buster Keaton, até chegar aos tempos atuais, com o já célebre salto de Tom Cruise em Missão: Impossível – Acerto de Contas.
A simbologia faz sentido. Assim como no trem, assistir a um filme é uma experiência nos “trilhos”. Uma vez dentro dele, você não está mais no controle e o destino é imutável. A vida de Dona Almerinda (Teca Pereira), similarmente, tem um rumo certo e inalterável. “Infelizmente não há muito o que fazer”, informa uma agente de saúde para o neto da idosa, Dé (Big Jaum). Almerinda está com Alzheimer avançado, o seu resto de vida será na cadeira de rodas, sem saber direito onde está, eventualmente sendo levada por Dé para ver o trem da Supervia passar, colocando o transporte tão conhecido pelos cariocas na história do cinema.

Falando assim, parece que Kasa Branca é um filme profundamente triste e melancólico. Ele não deixa de ter esses elementos, claro, mas não se trata só disso. Assim como seu “filme irmão”, A Festa de Léo, que também possui ligações com o grupo Nós do Morro, trata de encontrar o equilíbrio entre a tristeza do cotidiano e os sorrisos da rotina.
Desse modo, o estado de Dona Almerinda pode até não ter solução, mas isso não vai impedir Dé de trazer um pouco de felicidade para sua avó nesses dias derradeiros. Junto com os amigos Martins (Ramon Francisco) e Adrianim (Diego Francisco), o jovem buscará trazer um pouco de conforto e alegria para Almerinda.
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Tarefa nada fácil, afinal, como todo morador da periferia do Rio de Janeiro sabe, os obstáculos são diversos. Transporte precário, pouco dinheiro e um sistema de saúde pública que não dá conta da demanda. A realidade é difícil, mas Kasa Branca não se limita a registrar essas dificuldades, mas busca abordar o cotidiano que existe ao lado delas.

Mesmo que o eixo narrativo seja a história de Dé e Almerinda, o longa dirigido e roteirizado por Luciano Vidigal adota uma estrutura mais aberta, e testemunhamos também a vida de Martins e Adrianim, que enfrentam desafios e vivenciam alegrias de outras vertentes. Martins, por exemplo, se envolve com uma mulher comprometida, e Adrianim quer reconquistar Talita (Gi Fernandes), cujo relacionamento acabou por erro dele.
Um primeiro contato com essas tramas parecem delinear um final óbvio, de conflitos e rumos já conhecidos, mas não é o caso. Assim, a metáfora do trem me trai, pois Kasa Branca não cabe em termos tão fixos, porque o que ele mostra é que a realidade periférica não precisa se restringir a um certo tipo de filme ou a determinados dramas. Algumas coisas estão nos trilhos, mas nem tudo precisa estar. O filme de Vidigal não está, assim como as vidas de Dé, Martins e Adrianim também não estão. Uma vida diferente é possível, assim como outras narrativas também são.
Revisado por Mariana Perizzolo