“Fernanda Young: Foge-me ao Controle” (2024): documentário transforma escritora em poesia

A vida de Fernanda Young, sem dúvida, é um desafio para qualquer biógrafo. Afinal, quase tudo que Fernanda tinha para dizer de si mesma, ela própria disse. E com propriedade. 

Acredito que a escritora é a figura que melhor representa o conceito lacaniano de “ex-timo”, um neologismo criado pelo pensador para indicar algo do sujeito que lhe é mais íntimo, mais singular, mas que está fora, no exterior. Fernanda Young era toda intimidade, toda intensidade, mas ao mesmo tempo, toda pra fora.

Fernanda Young: Foge-me ao Controle (2024), de Susanna Lira é o primeiro exercício cinematográfico de contar o que e quem foi a escritora Fernanda Young, autora de diversos livros como Aritmética, As Pessoas dos Livros, A Vergonha dos Pés, entre outros. A melhor forma de traduzir o documentário para quem ainda não assistiu ou quer assisti-lo é: trata-se de um ensaio poético ou uma colagem íntima de Fernanda traduzida em imagens. 

Podemos pensar o filme através de duas perspectivas díspares, uma que se atenta para aquilo que o filme tem de potência e outra que aponta para aquilo que ele deixou de fazer. Assim, opto por fazer as duas e contentar e descontentar todos ao mesmo tempo. 

Transformando a vida em palavras e imagens

Poesia pura em disputa com as imagens. Não tem outra forma de traduzir a experiência de Fernanda Young: Foge-me ao Controle (2024). Somos convocados não a conhecer a escritora, mas a mergulhar numa fusão entre palavra/imagem/memória que costura a vida da autora com a própria história de cinema através de colagens que remetem a figuras femininas do cinema mudo. 

A expressividade dessas atrizes que ainda não tinham direito à fala, em alguns casos por conta do cinema, por outros literalmente pela condição feminina, se atravessam pelos escritos de Fernanda Young, tratados não como textos autobiográficos, nem tampouco como textos ficcionais, mas como formulações de personas que, no fim das contas, traduzir uma experiência coletiva desses seres mulheres. 

Leia também: 7 melhores poemas de Fernanda Young 

Além disso, o filme põe em contraste alguns trechos de entrevistas da própria Fernanda, em especial, uma com Afonso Borges no Sempre um Papo e outra com Marília Gabriela em seu programa. E, como não podia ficar de fora, vez ou outra também temos registros de alguns de seus programas de televisão como o Saia Justa ou o Irritando Fernanda Young.

E tudo isso junto forma um conto que, de forma alguma, escapa do toque ensaístico de Lira.

Os jogos com a forma ou uma história ainda não para todos 

É impossível dizer que o filme não comova ou que não traduza as complexidades de Fernanda Young. Por outro lado, o filme também deixa de contemplar uma Fernanda que, com muito esforço, sempre tentou ser mais popular e compreendida. Inclusive, em diversos trechos do filme, vemos ela própria dizendo que seus livros giram em torno de três coisas que ela acha que une a todos nós: o amor, a morte e o tempo. 

Ela diz, inclusive, que concentra seus livros especialmente no tema do amor porque ele é a marca que ridiculariza e iguala a todos nós. Diante do amor e de seu sofrimento, ficamos todos muito precários e parecidos, afirma.

E, por este caminho, Fernanda Young: Foge-me ao Controle (2024) deixa de ser um filme que possa contemplar qualquer um ou cativar um desavisado. Senti falta de escutar os amores de Fernanda Young como seu marido Alexandre Machado e só ouvimos sua filha através da leitura de um texto, com muita poesia, mas também com certa distância permitida pela récita, pela música, pelas imagens. 

Leia também: Os 8 melhores poemas de Dores do amor romântico, de Fernanda Young

A biografia de Fernanda Young, de certa forma, fica pouco contemplada, assim como sua trajetória pessoal, o que pode transformar o documentário num filme para amantes e iniciados na obra da autora, o que, talvez, pudesse não agradar tanto ela assim.

Entretanto, nada disso diminui o tamanho de Fernanda Young: Foge-me ao Controle (2024), filme que encarou essa figura nada simples que atravessou a terra com palavras, imagens, poesia, nudez, esporros, psicologia, irritações e nos deixou da vida como quem soprou o mundo para fora. 

Susanna Lira transforma Fernanda Young em poesia. Se é que ela já não era isso.

Revisão de Mariana Perizzolo

Veja o trailer do filme aqui:

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