Entre outubro de 1854 e setembro de 1855 houve um dos acontecimentos mais dramáticos da Guerra da Crimeia: o cerco à cidade de Sebastopol, em que o exército do Império Russo, que havia tomado a Crimeia aos turcos, viu-se sitiado pelas tropas enviadas por Inglaterra e França. Um mês após o início do cerco, chega a Sebastopol um jovem oficial da nobreza russa, Lev Tolstói, que tinha então 26 anos de idade e havia acabado de publicar seu primeiro livro.
Na cidade sitiada, Tolstói percorre os hospitais de campanha e os fronts de batalha, deixando seu testemunho em três relatos que combinam reportagem e ficção: “Sebastopol no mês de dezembro”, “Sebastopol em maio” e “Sebastopol em agosto de 1855”. Em prosa enxuta e viva, Tolstói se afasta dos lugares-comuns heroicos e românticos e busca traçar um retrato fiel da experiência da guerra, em todo o seu caráter absurdo e irracional.
Do que fala Contos de Sebastopol?
Em 1851, com apenas 22 anos de idade, Lev Nikoláievitch Tolstói alistou-se no Exército Imperial Russo. Deixava para trás uma vida de luxo, farras e jogatina nas capitais e ingressava nas fileiras armadas em busca de sobriedade e disciplina militar, cheio de expectativas. Após servir dois anos no Cáucaso, o jovem oficial pediu transferência para a frente de combate na Guerra da Crimeia, sendo enviado, por fim, à cidade portuária de Sebastopol, na qual as tropas russas se encontravam cercadas por forças inglesas e francesas, que tinham entrado no conflito ao lado do Império Otomano.
Enquanto as potências europeias contavam com jornalistas que acompanhavam a guerra in situ, a Rússia de Nicolau I vivia sob forte censura; ao longo dos onze meses que durou o cerco a Sebastopol, um dos poucos textos a tratarem do conflito, um dos mais importantes da história militar russa, são estes Contos de Sebastopol: publicados na revista O Contemporâneo de forma anônima, no decorrer do conflito, em meio a testemunhos orais e trechos de correspondência, esses três relatos escondem, sob a camada da ficção, um rico conjunto de reflexões sobre o tema da guerra e já delineiam o pendor antibélico do grande romancista.
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Com grande acuidade psicológica, Tolstói mostra como as fronteiras de classe, os jogos de interesses, o esnobismo e as hierarquias sociais ditam as relações entre os homens, mesmo no quadro da guerra. Em “Sebastopol em agosto de 1855”, por exemplo, conto que retrata a queda da cidade e a derrota dos russos, Tolstói novamente se aproxima do leitor com a história de um jovem e inexperiente oficial que chega a Sebastopol em busca do irmão mais velho, numa clara correspondência com a trajetória do próprio escritor, que se alistara no exército seguindo o exemplo de seu irmão Nikolai.
Nesse último conto, deixando de lado todo traço de sentimentalismo, Tolstói nos conduz mais uma vez pelo caos da guerra, através de cenas de batalha de grande maestria literária que irão culminar numa condenação da guerra e numa defesa do pacifismo, mais atual que nunca.
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Esta nova edição dos Contos de Sebastopol, em tradução direta do russo de Lucas Simone, traz ainda um texto do historiador inglês Orlando Figes sobre a Guerra da Crimeia, um retrato do escritor feito por um ex-colega de regimento e um libelo pacifista em que, três décadas mais tarde, Tolstói reflete sobre o tema geral da guerra.
O que foi a Guerra da Crimeia?
A Guerra da Crimeia é o nome geralmente dado ao conflito que opôs o império russo a uma aliança formada pelo Império Otomano, o Reino Unido, a França e o reino da Sardenha, e que se prolongou até 1856. A 16 de outubro de 1853 não se registou qualquer confronto, mas apenas a declaração de guerra do sultão otomano. Em março do ano seguinte a França e o Reino Unido fizeram o mesmo. O relato é de matéria da RTP.
Apesar da designação de Guerra da Crimeia, o conflito decorreu em diversos cenários, não apenas em ambas as margens do Mar Negro mas também nos Balcãs, no Báltico e no Pacífico, envolvendo um elevado número de forças militares e navais de ambos os lados, calculando-se que tenham lutado 900 mil soldados pelo império russo e cerca de 600 mil pela aliança adversária.
Quem foi Tolstói?
Lev Nikolaiévitch Tolstói nasce em 1828 na Rússia, em Iásnaia Poliana, propriedade rural de seus pais, o conde Nikolai Tolstói e a princesa Mária Volkônskaia. Em 1845, Tolstói ingressa na Universidade de Kazan para estudar Línguas Orientais, mas abandona o curso e transfere-se para Moscou e depois para Petersburgo.
Em 1851 alista-se no exército russo, servindo no Cáucaso, e começa a sua carreira de escritor, publicando os livros de ficção Infância, Adolescência e Juventude em 1852, 1854 e 1857, respectivamente. De volta à Iásnaia Poliana, funda uma escola para os filhos dos servos de sua propriedade rural. Em 1862 casa-se com Sófia Andréievna Behrs, então com dezessete anos, com quem teria treze filhos.
Os cossacos é publicado em 1863, Guerra e paz, entre 1865 e 1869, e Anna Kariên ina, entre 1875 e 1878, livros que trariam enorme reconhecimento ao autor. No auge do sucesso, Tolstói passa a ter recorrentes crises existenciais, processo que culmina na publicação de Confissão, em 1882, onde o autor renega sua obra e assume uma postura social-religiosa que se tornaria conhecida como “tolstoísmo”.
Mesmo assim, continua a produzir obras-primas como as novelas A morte de Ivan Ilitch (1886), A Sonata a Kreutzer (1891) e Khadji-Murát (1905). Espírito inquieto, foge de casa aos 82 anos de idade para se retirar em um mosteiro, mas falece a caminho, vítima de pneumonia, na estação ferroviária de Astápovo, em 1910.
Lev Tolstói
Contos de Sebastopol
Tradução e notas de Lucas Simone
Textos em apêndice de Orlando Figes, Iulián Odakhóvski e Lev Tolstói
Coleção Leste
224 p.
14 x 21 cm
288 g.
ISBN 978-65-5525-192-0
R$ 68,00