“A história de Kafka e a boneca viajante”: a experiência inventiva da leitura

Confira a crítica do espetáculo teatral “A história de Kafka e a boneca viajante”

Diante de uma peça de teatro, muitas vezes temos a sensação, ou simplesmente o reconhecimento, de que se trata de uma boa peça, ou ainda, de uma ótima peça. O contrário também acontece bastante, como com qualquer modalidade artística a que nos dedicamos com frequência. Mas é extraordinário quando uma peça de teatro nos atinge em cheio, com uma flechada longa e profunda, iluminando por dentro aquilo que sequer sabemos nomear. Nosso lugar na plateia de repente passa a ser totalmente nosso.

Para pessoas que, como eu, se interessam e se apaixonam por coisas que não estão no topo das paradas de sucesso do consumo capitalista, é como se tivéssemos sintonizado uma emissora de rádio clandestina de um país distante que transmite canções e notícias que ampliam a ideia que fazemos do mundo. Mais raro ainda é quando ao final do espetáculo olhamos em volta e vemos outros olhos brilhando. Se é uma peça endereçada a crianças e os olhos dos adultos estão brilhando ao final do espetáculo, é até um pouco difícil ir embora do teatro. Tem alguma coisa que parece que só acontece ali. Mas esse ali é, na verdade, um aqui. É muito dentro da gente.

Padeci de uma destas flechadas no dia 4 de agosto de 2024, uma tarde de domingo, na hora exata de uma partida disputada da seleção feminina de vôlei nas Olimpíadas – concorrência dura no meu coração dividido… Achei até que ia demorar a entrar no jogo da peça. Que nada. Em poucos minutos, já não tirava os olhos da cena.

Foi logo no início do Festival Midrash de Teatro, que tem se realizado no Teatro Café Pequeno e neste ano chegou à sua 10ª edição. Naquela ocasião, foi uma apresentação única, mas o público carioca está com sorte: a peça vai estar em cartaz no Teatro Ziembinski de 17 de agosto a 1º de setembro.

O que mais me chama a atenção nesta montagem é a ênfase que ela dá à experiência da leitura – mais especificamente, à experiência crítica da leitura – e aos modos corporalizados de compartilhar essa vivência internalizada. A peça conta com a direção de Isaac Bernat, o idealizador do projeto, a pessoa que um dia leu aquele livro e começou a sonhar com aquela história em pé, que não conseguiu se contentar com a leitura solitária e precisou dar um jeito de compartilhar o que vislumbrou no contato com o livro.

A encenação poderia simplesmente colocar em cena o universo fictício (embora inspirado em uma história real) em que um escritor, comovido com o sofrimento de uma criança que havia acabado de perder sua boneca, começa a criar cartas que teriam sido escritas pela boneca e endereçadas à menina para explicar o seu súbito desaparecimento. Só isso já seria bem bacana, afinal, as cartas que o personagem Kafka lê para a menina Elsi a cada encontro são como breves ensaios sobre a vida e o desejo de estar no mundo em movimento. Além disso, a amizade entre um adulto e uma criança pode ser, em si, uma coisa muito bonita. A delicadeza e a relevância do intercâmbio de pontos de vista já seriam materiais suficientemente interessantes para uma peça. Em cena, João Lucas Romero, no papel de Kafka, e Laura Becker, como Elsi e outras personagens femininas, parecem atentos e desejosos para escutar e dizer aquelas palavras e frases previamente decoradas como se fosse a primeira vez.

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Mas a dramaturgia de Julia Bernat atravessa a narrativa com interrupções, endereçando questionamentos ao público, fazendo o exercício de imaginar aquela situação nos dias atuais, sem permitir que o fluxo narrativo siga o seu curso, por assim dizer, naturalmente, ou melhor, de maneira ilusionista. Em uma destas intervenções, por exemplo, ator e atriz atentam para como hoje ficamos desconfiados da situação mesma da peça: um homem adulto e uma criança se encontrando todos os dias em um parque sem nenhuma supervisão adulta.

O elemento épico, crítico, é quase tão importante na peça quanto a relação intersubjetiva entre os personagens e o desenrolar da trama. Esta criticidade, no entanto, vem cheia de leveza, especialmente com as canções que Laura e João Lucas cantam e tocam ao vivo, com a direção musical de Pedro Luís e a preparação vocal de Soraya Ravenle. Como Soraya também assina a direção de movimento, intuo que sua presença no processo criativo tenha colaborado para que as atuações consigam operar criticamente sobre a fábula sem jamais perder a ternura.

O que considero instigante nas intervenções reflexivas da dramaturgia sobre a história é o convite para que as crianças pensem sobre a ficção e, consequentemente, sobre as cenas e as narrativas da vida. O elenco compartilha o prazer que há nessa atitude de fazer cortes, de estranhar os fluxos, de fazer perguntas para as coisas. A vivência de leitura que é transposta para a cena é aquela de que fala Roland Barthes, quando durante a leitura a gente levanta a cabeça, quando algo nos acerta de um jeito que é preciso interromper, mesmo que seja só para respirar mais fundo e mergulhar no texto outra vez.

Laura e João Lucas sustentam o jogo de entrar e sair dos personagens sem vícios de atuação de teatro infantil, sem ficar explicando a linguagem da peça, sem imprimir ênfases no corpo, com trejeitos ou alterações na voz, sem “demonstrar” as intenções e as quebras e, o que é ainda mais significativo, sem “imitar” criança. Vale lembrar que esses registros de atuação que subestimam a participação cognitiva do espectador também acontecem no teatro adulto, mas, o teatro feito para crianças quase sempre tem a armadilha da personagem criança.

Nesse sentido, chama atenção a desenvoltura de Laura Becker que, além de fazer mais de uma personagem, fica a cargo da pequena Elsi e em nenhum momento escorrega para uma indesejável redundância de caracterização da menina. A atriz tem uma trajetória profissional coerente na lida com crianças em trabalhos artísticos, inclusive para além da sala de espetáculos, com experiências na Enfermaria do Riso e nas ações do Corre Cutia.

É como se ambos estivessem simplesmente brincando de fazer teatro e apostando que as crianças na plateia vão entrar no jogo se elas quiserem. Afinal, crianças entendem metalinguagem melhor que ninguém, estão mais que acostumadas a lidar com interferências nas brincadeiras e sobreposições de camadas entrelaçadas de real e ficção. Elas estão o tempo todo munidas da capacidade de felicidade e jogo, no espaço entre, na fronteira fértil que é o intervalo criativo da oscilação entre realidade e imaginação, uma zona de prontidão e improviso que o mundo dos adultos vai esfriando com suas terapias de choque de baldes de água fria.

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Por outro lado, a peça, ecoando o livro, movimenta o imaginário dos adultos sobre a literatura de Kafka. Conhecido por seu olhar um tanto sombrio sobre o mundo, pelo peso das figuras masculinas de autoridade nos seus escritos, pelas tramas incompreensíveis em que seus personagens são capturados, sua figura ganha um adicional de afabilidade com a história da boneca viajante e com o carisma contagiante de João Lucas. O ator deixa sempre evidente o quanto aquele adulto se surpreende e se encanta com o pensamento e a sinceridade da criança. Fica visível, na sua disponibilidade para o momento presente da cena, que a dinâmica de aprendizado e generosidade entre Kafka e Elsi é uma via de mão dupla. Ele mesmo, ator adulto, parece inteiro na escuta das crianças na plateia.

Além disso, me parece relevante marcar que esta não é a primeira aventura dramatúrgica de Julia Bernat com o autor austríaco. Em 2014, seu grupo, o Teatro Voador Não Identificado, realizou uma montagem inventiva e bem-humorada de O processo, com a direção do muito querido Leandro Romano, que tinha a rara habilidade de combinar complexidade e leveza – algo que também aparece na abordagem dramatúrgica de Julia sobre o material literário em questão.

De modo geral, me parece que o espetáculo faz com quem está na plateia o trabalho que o Kafka da peça faz com a menina Elsi e vice-versa. Movimentar imaginários não é tarefa simples, especialmente se vivemos em um momento histórico tão carregado de perspectivas de extinção da vida humana na Terra. Ouvi certa vez em um podcast com a Helena Vieira que o afeto que se opõe ao pessimismo não é a esperança, é a imaginação. A imaginação crítica, aquela que levanta a cabeça, que faz abrir melhor os olhos, é a que nos prepara para lidar com as muitas perdas que as crianças logo começam a experimentar – com o sumiço de uma boneca, a morte de um cachorrinho, a saída de um dos pais do ambiente familiar ou a partida precoce de um amigo.

É também o que precisamos para lidar com o fim do mundo como o conhecemos. Afinal, o fim de um mundo é o começo de outro. Isso me vem a partir de um trechinho da peça, que relato a seguir, que me deixou emocionada, talvez pela ênfase na ideia de que a nossa relação com as coisas da vida precisa de uma dimensão autoral a despeito dos contextos, o que os estudos feministas, antirracistas e decoloniais chamam de agência. A capacidade de olhar criticamente é o primeiro passo para se começar a agir criativamente.

Sentados lado a lado, conversando de igual para igual, o personagem adulto oferece à personagem criança um mini globo terrestre, depois de ter relatado as várias aventuras da boneca que viaja pelo mundo e se apaixona pelo teatro. A menina olha aquele brinquedinho com um sorriso meio tímido e pergunta – O mundo? – e o escritor responde, fechando o ciclo daqueles encontros extraordinários – É seu.

Daniele Avila Small é artista de teatro, crítica e curadora independente.

Uma versão um pouco diferente desta crítica foi publicada orginalmente no site do Festival Midrash.

Ficha técnica: “A história de Kafka e a boneca viajante”

Autor: Jordi Sierra i Fabra
Dramaturgia: Julia Bernat
Direção: Isaac Bernat
Elenco: João Lucas Romero e Laura Becker
Direção Musical: Pedro Luís
Preparação vocal e direção de movimento: Soraya Ravenle
Iluminação: Aurélio De Simoni
Assistente de direção: Paula Furtado
Figurino: Margo Margot
Cenário: Doris Rollemberg
Direção de produção: Aninha Barros
Pré-produção: Elissandro de Aquino
Produção executiva: Aninha Barros e Paula Furtado Desenho
Operador de Som: João Gabriel Mattos
Operador de Luz: Marcelo de Simoni
Contrarregra: Luiz Fernando Souza da Silva
Fotos: Dalton Valério
Mídias: Lucas Furtado
Assessoria de Imprensa: Cristiana Lobo
Identidade Visual: Bianca Oliveira
Idealização: Isaac Bernat
Realização: Vaca Amarela Educação e Arte LTDA

Serviço

De 17/08 a 01/09
Sábados e domingos às 16h
Teatro Municipal Ziembinski
Avenida Heitor Beltrão, Tijuca, Rio de Janeiro

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