O Bastardo (2024): ao vencedor as batatas 

Imagem: IMDB

Nunca a famosa frase do romance de Machado de Assis fez tanto sentido em um filme: “ao vencedor, as batatas”. Talvez seja por essa relação que O Bastardo (Dinamarca, 2023) recebeu aqui um título com uma tradução direta, mais exata do que a que ganhou na distribuição americana: “The Promised Land”. 

Essa, evidentemente, é uma associação livre nossa do longa dinamarquês com a filosofia de Quincas Borba, um dos maiores personagens machadianos, logo depois do Bentinho, de Dom Casmurro (1899), e de Brás Cubas das Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). O herói de O Bastardo foi inspirado na tríade de anti-heróis do nosso Machado? Seria uma pergunta interessante a ser feita ao diretor do filme, Nikolaj Arcel, ou à escritora Ida Jessen, autora do livro The Captain and Ann Barbara (2020) do qual o roteiro é adaptado. 

O protagonista desse épico lançado em 2023 na Dinamarca e que chega em setembro de 2024 ao Brasil é o capitão Ludvig Kahlen, brilhantemente interpretado por Mads Mikkelsen. Com os protagonistas de Machado de Assis, ele partilha a obsessão pela conquista da própria honra. Mas diferentemente do Bentinho, que busca desvelar um suposto adultério, de Brás Cubas, que reivindica a glória por meio de um composto químico supostamente genial, ou do Quincas Borba, que propõe um sistema filosófico que supostamente arruinaria todos os demais, a honra do capitão Kahlen não é baseada em suposições cômicas.

Imagem: O universo da TV | Mads Mikkelsen e Gustav Lindh

A afirmação da própria honra devia ser uma questão imprescindível aos homens brancos dos séculos XVIII e XIX, uma época em que vários deles declararam sua grandeza apropriando-se de terras em nome de seus países. Em O Bastardo, a jornada do personagem de Mikkelsen é justamente essa: ele é um capitão aposentado do exército dinamarquês sem posses, sem família e sem mulher que se lança ao desafio de colonizar uma terra infértil. Sua proposta ao império da Dinamarca é a promessa de tornar a terra fértil e conquistá-la mediante a garantia de um título de nobreza. Ele consegue a permissão real para a sua missão solitária e segue o seu destino com vários sacos de batatas. 

O Bastardo é uma rara ocasião em que você talvez sinta que tem razão por ficar ao lado do colonizador. O enredo consegue isso sem artifícios hollywoodianos que se veem em títulos como o interessante A Missão (1986), com Robert de Niro, ou o raso Cruzada (2005), com Orlando Bloom. Em grande parte, isso se deve ao quão real é o personagem Ludvig Kahlen. Mikkelsen, provavelmente, é o maior responsável por atrair o público brasileiro para ver essa obra nos cinemas. Tem esse mérito não só por ser um dos rostos nórdicos mais conhecidos aqui, mas porque a verdade que ele estabelece nesta sua mais recente interpretação faz dele um herói questionável no bom sentido. Sua essência não é plana e artificial, como é comum em jornadas de herói, sobretudo, nos épicos. Ele é humano e palpável. Quando sua moral é colocada à prova, suas atitudes não são óbvias e nem sempre agradam ao telespectador ou às personagens que o apoiam. 

Imagem: IMDB | Mads Mikkelsen e Melina Hagberg

A proximidade que é possível estabelecer com os personagens é um fator surpreendente, afinal não é algo que se espera de um drama frio que se passa na Dinamarca do século XVIII. No geral, o cinema contemporâneo dos países nórdicos tem a habilidade de revelar as entranhas dos personagens, mas fazem isso por meio de diálogos bem fluídos em situações típicas do século XXI, como nos filmes mais recentes de Ruben Östlund ou nos premiados A pior pessoa do mundo (2021) e Druk (2020), protagonizado pelo próprio Mads Mikkelsen. 

Sem quaisquer desses elementos, O Bastardo não deixa de revelar em profundidade a aura de seus personagens. A fotografia belíssima de Rasmus Videbæk é capaz de transmitir a solidão e a frieza da missão quase estéril do protagonista e também a atmosfera assombrosa, quase ao nível do castelo do Drácula, da casa do senhor das terras que é cruel em impedir que Kahlen realize o seu projeto colonizador. 

No geral, esse novo drama épico de Nikolaj Arcel cumpre a jornada clássica do herói: o protagonista começa com um propósito e uma certeza que deixarão de ser absolutos para si à medida em que vive e enfrenta novas verdades. Nesse sentido, o longa explora desde dramas familiares até questões sobre racismo com densa substância para a história das personagens Ann Barbara e Anmai Mus que ganham interpretações tocantes das atrizes Amanda Collin e Melina Hagberg. Inclusive, há que se reconhecer o carisma que Mikkelsen tem com crianças em cena, algo que se vê aqui e também em Druk (2020) e A Caça (2012). 

A jornada do herói sempre transforma o personagem principal. E o ator que o interpreta também passa por alguma transformação? Questionado sobre isso, Mads Mikkelsen afirma que não fica passível a se transformar ao longo do processo, visto que ele já começa a jornada ciente de tudo pelo que o seu personagem vai passar e, como ator, tem o poder para determinar como tudo isso afetará o caráter do seu herói. “Para interpretar Einstein, eu tenho que ser mais inteligente que ele”, declara o ator, reforçando que não há transformação quando já se sabe o que vai acontecer. 

Em relação à plantação de tubérculos do capitão Ludvig Kahlen, vemos que ele percorre o caminho completo da máxima humanitista de Quincas Borba: “ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”. Entre frustrações e conquistas, o bastardo é um herói de verdade. 

Minha nota para O Bastardo no Letterboxd: 3 ½ estrelas.

O Bastardo (Título original: Bastarden), 2023

Direção: Nikolaj Arcel

Roteiro adaptado do romance The Captain and Ann Barbara (2020), de Ida Jessen

Duração: 2h 7min

Classificação: 18 anos

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