Por me dedicar à escrita, uma das minhas paixões literárias reside nos livros sobre o ato de escrever. Quero entender o fenômeno da criação literária. Esmiuçar a transformação de palavras em texto, história, poesia. Flertar com a paixão de quem escreve por desejo. Em decorrência dessa predileção por esse tipo de ensaio, fiquei curiosa com o livro A viagem inútil, da escritora, atriz e dramaturga argentina Camila Sosa Villada. Como uma viagem pode ser inútil? O que seria uma trans/escrita? De que forma os atos de escrever e viajar podem ser relacionáveis?
Um ensaio sobre a escrita e a leitura
A viagem inútil é um ensaio autobiográfico. Assim, é por meio da sua história pessoal que Sosa Villada disserta sobre a escrita e a leitura, reconhecendo como esses atos intelectuais estiveram involucrados na sua transformação identitária e corporal. Na infância, a escrita, atividade ensinada pelo pai, e a leitura, incentivada pela mãe, são reconhecidas como expressões de um amor que, com o passar dos anos, virou intolerância e incompreensão.
Na adolescência, a leitura é refúgio, espaço para se usufruir o prazer da solidão. Quando adulta, a escrita torna-se o meio de reconhecimento do seu eu e de criação de novos espaços para manifestação da sua arte. Como ela própria escreve, “(…) salvo minha vida. Salvo minha tristeza. Invento um mundo só para mim.” No meu olhar, dessa forma, a trans/escrita relaciona-se às mudanças internas e externas as quais a escrita é testemunha e confidente.
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As histórias pessoais como fio condutor
O livro dialoga em diversos trechos histórias escritas na sua obra autoficcional mais célebre, O parque das irmãs magníficas, publicada no Brasil pela Editora Tusquets. Reconheci algumas das histórias a ponto de relembrar a trajetória da autora. Para uns, o revisitar da mesma história pode parecer repetitivo; para mim, a metamorfose do menino no interior da Argentina em travesti que se prostituía nas ruas de Córdoba e que, concomitantemente, escrevia em um blog, sempre renderá novas reflexões.
Uma reflexão, inclusive, é sobre o título do livro. A viagem inútil, segundo Sosa Villada, é aquela em que o ato de escrever não vai a nenhuma parte, não tem nenhum resultado concreto. Ela existe apenas por existir, a ponto de ser descartada sem remorso. Segundo ela, “é tão bom destruir o que está escrito, porque a gente tem a sensação de destruir a si mesma. Eu chamo isso de viagem inútil, o que está na cabeça e não pode ser escrito. A vida que não se escreve.”
Em tempos de exaltação da produtividade, de excesso de desatenção, de avalanche de informações vazias, ler a trans/escrita de Camila Sosa Villada é como “paralisar o ritmo do mundo”. Por meio das suas frases lúcidas e poéticas, vamos entrando no universo em que a escrita deve ser simples, crua, espontânea, desejante, pessoal.
Uma viagem convidativa e infindável, sem dúvida nenhuma.
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Sobre a autora
Camila Sosa Villada nasceu em 1982 na cidade de La Falda, em Córdoba, Argentina. Cursou comunicação social e licenciatura em teatro na Universidade Nacional de Córdoba. Em 2009, como atriz, estreou seu primeiro espetáculo, Carnes tolendas: retrato escénico de un travesti [Carnaval: retrato cênico de uma travesti]. Atuou em diversas produções audiovisuais no cinema e na televisão e é autora do livro de poesia La novia de Sandro [A namorada de Sandro, 2015], dos contos Sou uma tola por te querer (Planeta, 2022) e do romance Parque das irmãs magníficas (Planeta, 2021), que recebeu o prêmio Sor Juana Inés de la Cruz pela Feira Internacional do Livro de Guadalajara.