Parafraseio aqui o parágrafo introdutório de um artigo bilíngue que escrevi para meu blog de cinema clássico há três ano e meio: numa ocasião, no Twitter (RIP) perguntaram: se Fernanda Montenegro é a maior atriz deste país, quem seria o melhor ator? As respostas foram muitas e muito variadas, mas se me perguntassem eu responderia sem pestanejar: Grande Otelo. Muito mais que um “sidekick”, um escada para comediantes como os parceiros constantes Ankito e Oscarito, Grande Otelo foi um homem culto e talentosíssimo tanto na comédia, pela qual é mais lembrado, quanto no drama. Exaltá-lo é preciso. E é muito mais que isso que o documentário “Othelo, o Grande” faz: dá ao artista a voz que muitas vezes lhe foi negada para versar sobre identidade, memória, carreira, religião, enfim, vida.
Nascido em 1915 em São Pedro de Uberabinha, nome gozado que depois foi trocado por Uberlândia, na infância cantava para ganhar uns trocados. Virou artista para comer bife a cavalo, conforme uma lembrança dos tempos de criança. Pouco tempo depois se juntou à Companhia Negra de Revistas, deixando para trás a profecia de um professor de canto que disse que o menino cantor um dia interpretaria a ópera Otelo. A profecia não se realizou, mas o nome pegou.
Após fazer turnê com a Companhia, é contratado pelo Cassino da Urca recebendo menos que um artista branco e tendo de entrar pela porta dos fundos. Demais demonstrações de racismo, incluindo uma denúncia do artista contra um empregador, são acompanhadas de cenas de cunho racista nos filmes de Grande Otelo, aí incluída a terrível frase “como pode uma cabeça tão preta ter um pensamento tão claro!”.
De cara, ele nos diz que o homem Sebastião Prata é praticamente independente do artista Grande Otelo. Conta também que todo artista cômico gosta de fazer o público chorar às vezes, tanto quanto o artista dramático gosta de fazer rir. São declarações assim, em primeira mão, de que o documentário está cheio, para nossa sorte e deleite. Não são entrevistadas pessoas que conheceram Grande Otelo: ele fala por si mesmo.
Ouvimos do próprio artista sua relação com Orson Welles e com a fita inacabada “É Tudo Verdade”, iniciativa destruída pelo estúdio RKO porque o cineasta havia filmado muitos negros e muita pobreza e não era isso que queriam explorar do Brasil. Outra fita perdida de Grande Otelo é também de suma importância para a história do nosso cinema: “Moleque Tião”, que ele protagonizou em 1943. Seis anos depois, outro triunfo, porém não esmiuçado no documentário: “Também Somos Irmãos”, um filme de 75 anos atrás que permanece atualíssimo por tratar de racismo.
A chanchada que o consolidou é, nas palavras dele próprio, a expressão de uma época de simplicidade generalizada. Não poderia faltar aí um clipe de Grande Otelo vestido de Julieta, trocando juras de amor com o Romeu de Ankito – ou Ankito de Romeu – em 1949.
Onipresente na trilha sonora é o samba, o mais brasileiro dos ritmos. Grande Otelo não se explica sem samba, seja como sua paixão ou como assunto de trabalho, a exemplo do sambista que interpreta com maestria em “Rio Zona Norte” (1957). Grande Otelo foi também compositor, de destino nem tão trágico quanto o protagonista do filme de Nelson Pereira dos Santos: cantou no cinema algumas de suas marchinhas, inclusive vestido de vedete.
A vida de Grande Otelo não é toda sem tragédias. A maior delas, ocorrida em 1949, foi a morte do filho pequeno, assassinado pela própria mãe, que em seguida se matou. A situação quase levou o artista ao suicídio. Conseguiu se reerguer – como “Moleque Tião” havia reerguido o cinema brasileiro – casando-se e tendo mais quatro filhos. As bodas e o nascimento de cada rebento eram assuntos impressos em jornais e revistas. Deu a volta por cima também na carreira quando, após o fim da era de ouro das chanchadas, apesar de o considerarem acabado, se reinventou como artista dramático, fazendo em 1969 um de seus papéis mais conhecidos em “Macunaíma”. Encontrou sucesso ainda na televisão e partiu como trinta anos mais tarde partiria outra grande estrela negra do nosso cinema, Léa Garcia: às vésperas de receber uma homenagem num festival de cinema.
“Othelo, o Grande” partiu de mais de 300 horas de material gravado, editado à exaustão e sempre buscando independizar a narrativa com depoimentos do próprio artista. Sobre sua importância, o diretor Lucas H. Rossi dos Santos declara:
“Eu gosto de imaginar Otelo como um Exu, um orixá que abriu os caminhos para que pessoas negras pudessem estar aqui hoje, trabalhando com arte e cultura no Brasil, inclusive eu. A partir disso, o papel dele é de extrema importância, pois ele conseguiu abrir essa trilha para nós e colaborou não só como artista, mas como um Griô (ancestral que tem por vocação preservar e transmitir as histórias e conhecimentos do seu povo)”.
No meio de um museu, seminu, sentado na pose de “O Pensador” de Rodin, ele consegue fazer com que uma única lágrima escorra de seu olho esquerdo. O único ator brasileiro a trabalhar tanto com Josephine Baker, Orson Welles quanto com Werner Herzog; o homem que Carlos Drummond de Andrade afirmou querer ser. Grande Otelo é gigante. E aqui temos um documentário irretocável sobre ele para que não nos esqueçamos disso.
Trailer: