“ENTRENUVENS”, de Priscila Topdjian: estesia no avesso da tapecaria de penélope

ENTRENUVENS : ESTESIA NO AVESSO DA TAPEÇARIA DE PENÉLOPE

resenha desenvolvida por Daniel Garcia Rodrigues

escritor, doulo de escritores e biblioterapeuta

4 de setembro de 2024

Depois de Stéphane Mallarmé, talvez não fosse mais necessário escrevermos poesia, porque esse poeta levou a extremos o poder da linguagem encarnada na palavra escrita. Seus herdeiros concretistas tentaram e continuam tentando ampliar os extremos da linguagem, apelando para as relações entre a palavra e as artes visuais – destacando-se cinema e publicidade – com mais ou menos sucesso, o que torna ainda mais difícil ser poeta no século XXI e conseguir merecer o rótulo. Há autores que o merecem, como Priscila Topdjian, poeta criadora de entrenuvens, sem enveredar por relações diretas com as artes visuais.

entrenuvens nos rouba o fôlego, gera um estado de intensa estesia – oposto da anestesia (pobreza das sensações e sentimentos). Seus poemas são constructos poéticos emergindo de um mundo enlameado de mediocridade. Mereceriam figurar nas listas dos mais vendidos ou melhores de um certo período histórico. Topdjian pode até vestir bem certos rótulos, embora não caiba neles, porque os rasga e transcende: “mulher”, “feminista”, “brasileira”.

Seu fazer não dá pontos sem nós, mas firma com mestria um bordado de signos em cada retalho-poema de uma tapeçaria de nuvens. Desde o título grafado em minúsculas: entrenuvens, conduz-nos à concretude gráfica e sintática, perturbando o desejo de enxergarmos e ficarmos entre “algos”. Tentamos fixar os olhos na palavra “nuvens”, porém ela não está sozinha, nem é mais a palavra “nuvens”, metamorfoseou-se em outra coisa, outro signo: “entrenuvens”. Se “nuvens” sugere formas informes, voláteis, de grande poder de visualização, apelando para nossas fantasia, imaginação e subjetividade, afinal cada um vê o que quer nas nuvens, o nome do livro nos convida a rever sua condição de palavra, e mais, de palavra estranha, inexistente, inventada. Por outro lado, antes de “nuvens”, grudada nela, temos a preposição “entre” e nenhum espaço vazio, ao menos não no título. 

O “entre” nos será dado com generosidade, se pudermos ser leitores desejosos, atentos, cuidadosos, lentos. Desde a dedicatória aos avós (in memoriam), passando pela epígrafe, a autora tece suas palavras entre o aqui e lá, o além, entre realidade e linguagem, discutindo na forma e no conteúdo as grandes questões da condição humana: somos seres biológicos, mortais, finitos e criamos pensamento, cultura e civilização que ultrapassam as dores de nossa suposta irrelevância e de nossa impermanência. Priscila parte de dois grandes mestres da Literatura e da Filosofia Ocidentais: Goethe e Schiller, ao questionar a respeito da utilidade da criação poética, respondendo, apoiada neles e nos versos de entrenuvens, com outra pergunta: para que serve a realidade?

Sete seções e setenta poemas buscam respostas, metamorfoseando certezas clichês em vapor, fumaça, poeira. A história, a política, a memória, a infância, a morte, os amores, as relações são desautomatizados na busca da escrita sempre por achar. A poeta finge tão completamente segurar nas mãos de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Thomas Mann, Alice Ruiz, Sylvia Plath, afirmando, na verdade, sua “vocação para a peste” em lugares de fala transformados no espaço dos signos: a pauta, a tela, a página em branco, portos ainda a encontrar. Sejam esses portos o leitor, a vida, a realidade, a história da literatura, a morte, o desaparecimento nas entrelinhas, entrenuvens de cada novo livro sempre a chegar.

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Estudiosa de filosofia e estética, Topdjian consegue transformar essas disciplinas de pensamento em experiências de construções poemáticas audaciosas e irônicas. Na chamada vida “real”, ela é uma mulher belíssima que chega a lembrar a beleza de personagens mannianas como Tadzio e Nepomuk, essas criações que são complexas metáforas da obra sempre inalcançada. Seria um deleite rir da armadilha da beleza, se essa mulher, essa Penélope não fosse uma hábil tecelã criando a seda em que nos aprisiona não na beleza dela própria, mas na notável beleza de estruturas, sistemas, movimentos que são os poemas desse livro ardiloso.

Escolho um poema perigoso: “Da biografia”, para ilustrar o truque dessa borboleta venenosa: a autora, cujos verdes olhos sugerem a borboleta brasileira: Esmeralda Haetera, do romance Doutor Fausto, de Thomas Mann. Esmeralda é o nome que o protagonista – Adrian Leverkühn – dá à prostituta de quem, aparentemente de propósito, pega sífilis para simular o encontro com Mefistófeles, trocando a alma, a sanidade, por uma obra-prima.

Em “Da biografia”, nossa Penélope Esmeralda, ao falar da biografia em geral, parece exorcizar o modismo historiográfico destes tempos, resistindo à queda nas tentações da autobiografia, mas sendo mulher, escreve, em dezesseis versos, um tratado sobre feminismo e patriarcalismo, tendo a audácia de mencionar Sartre e Beauvoir quase transformados em substantivos, substâncias, para, ao final, reduzir a mulher à biologia: “besta fera”, “fêmea dilacerada”.

As camadas de teorias e discursos – de história, de sociologia e de teoria da literatura – envolvidas nesse poema autorizariam centenas de páginas de análise e crítica. Prefiro, no entanto, remeter o leitor a buscar noutros poemas de abordagem sociológica de entrenuvens o diálogo com outras vozes discursivas que tagarelam nos espaços midiáticos e acadêmicos a respeito da necessária e urgente literatura escrita e consumida por mulheres, negros e outras minorias.

É provável que nossa Esmeralda encante e desconstrua o leitor, em definitivo, com muito mais competência que Circe – a deusa feiticeira – atormentando mais que as sereias os marinheiros de Ulisses. E mais que Penélope enganando por décadas os pretendentes com seu bordado sempre desmanchado, a recomeçar.

Sobre a autora:

Priscila Topdjian mora em São José do Rio Preto/SP, de onde escreveu entrenuvens. É docente de literatura e filosofia, como Mestra em Teoria e Estudos Literários, pela UNESP (Ibilce). Atualmente, desenvolve, na mesma instituição, mas em processo de doutoramento, pesquisa sobre a poesia de Álvaro de Campos.

“Entrenuvens” é seu livro de estreia, premiado com Prêmio Nelson Seixas (2023), mas já participou de muitos outros editais e concursos. Seu poema “Lira dos trinta anos”, foi premiado no “Concurso Nacional Novos Poetas” (2018), da antologia “Poesia Livre”, e, o poema “Vocação para peste”, foi o primeiro colocado no “Concurso Poesia na Cidade”, promovido pelo jornal Diário da Região (2021). Ambos incluídos no presente livro. Para Priscila, escrever é o modo mais honesto de tresler o mundo e de criar novos mundos.

O livro pode ser adquirido no site da Editora Patuá, diretamente com a autora pelo Instagram, ou na Bienal do Livro de São Paulo, onde a autora fará uma sessão de autógrafos no dia 14.09, às 13:00, no Estande da Diversa Livraria.

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