Através de seus diários, “Mal Secreto”, de Thiago Prado, faz um recorte de um tempo, de uma pessoa e uma geração
Para que serve um diário? A pergunta é estranha porque de cara coloca a função da “utilidade” em uma coisa como um critério para se avaliar esse gênero que, pelo menos na aparência, se refere a uma escrita de si. Faz tempo que não somos mais leitores ingênuos de entender que os diários – nem tampouco as cartas, na verdade – são uma escrita íntima. Pelo contrário, os diários sempre foram cartas enviadas a um outro tempo, a um leitor sem nome, a alguém que as leria quando aquelas palavras talvez não tivessem mais efeitos diretos na vida de quem as viveu e escreveu.
Com o advento dos blogs, por exemplo, os diários se tornaram não só formas de se escrever, como também de comunicar sua experiência íntima com outras figuras anônimas espalhadas por aí. As redes sociais, por fim, transformaram os diários em objetos híbridos, íntimos e públicos, escritos e visuais, linguagem e telas. E é isto que Thiago Prado percebe, entende, inventa e escreve em seu “Mal Secreto”.
Mal Secreto é sem tirar nem pôr, os diários do artista visual Thiago Prado, nascido em Realengo, subúrbio carioca, mas morador do bairro do Leme, territórios que inspiraram Nara Leão e Clarice Lispector. Para ser mais correto, aquilo e acolá, Thiago nos dá um pouco de tirar e pôr, um nome que é suprimido ou história que é substituída, enquanto outras são acrescentadas, como diálogos de whatsapp e troca de mensagens.
Nada disso, no entanto, serve para proteger Thiago ou os outros, pelo contrário, o exercício de escrita – que vai de 4 de novembro de 2022 até 23 de abril de 2023 – é uma verdadeira coleção de memórias, histórias, reflexões, obras lidas, ouvidas, escritas, pintadas, através de uma profunda relação com a arte e com a vida.
Enquanto lia, e digo isso antes de começar a uma análise mais densa, tive a intensa sensação de estar diante da prova do que a arte faz em nossas vidas. É importante também notar que, embora o livro pretendesse se chamar “Sem nome e sem hashtag”, a relação de Thiago com a tecnologia é fascinante.
Por ser um sujeito movido literalmente pela arte, a internet para ele é um mundo que respira vida e lhe traz a todo instante o mundo de suas ídolas, Elis Regina, Gal, Ana Suy, e até seus amigos e amigas mais íntimos. Para ele, a internet jamais é um lugar de alienação, mas de informação, conexão e invenção.
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Para Thiago, todo mundo está sempre a ser encantado por um trecho de livro, seja A via crucis do corpo de Clarice, Crime e Castigo de Dostoiévski, Vidas Secas de Graciliano Ramos, seja pela música, como a relação íntima com Nara Leão e a companhia sempre presente de Gal Costa.
O título do livro, inclusive, é inspirado em uma canção de Waly Salomão e Jards Macalé, gravada por Gal no álbum “Fa-tal – Gal a Todo Vapor”. Conta ele:
“Ainda me lembro como eu estava e onde eu estava, quando prestei atenção pela primeira vez nessa música. (…)
Ouvindo Mal Secreto, entendi que Gal estava cantando por mim. Música é magia, né? Generosamente, Gal emprestava para mim a voz e os gritos que eu não conseguia emitir.
Acho que esse diário deve se chamar assim.
Aviso aos leitores: não é mais ‘Sem nome e sem hashtag’, . Se chama agora ‘Mal Secreto’”
Aos poucos, então, “Mal Secreto” vai virando uma obra de pura contaminação. Thiago vai sendo contaminado pelo mundo e expressa sua profunda relação com ele através da passagem dos dias. E nessas travessias pelo mundo, ele vai montar seus pequenos tratados, por exemplo, sobre o amor:
“Da janela deste ônibus, olhando o Rio de Janeiro, percebo que os maiores movimentos acontecem sob o toque do amor.
Sou movido pelo amor.
Pela raiva também, com a raiva de poder não estar, como os outros podem sem qualquer esforço.
Mas não existe raiva, nem saudade, que me faça chorar sem amor.”
Seja seu pequeno tratado sobre a saudade:
“Sinto saudade é de gente
e da gente,
daquilo que somos
ainda que nem sempre consigamos ser quando estamos juntos,
mas há sempre uma promessa
de sentir e de ser.
Sinto saudade (de algumas pessoas).
No decorrer do livro, vamos descobrindo que parte dessa sensibilidade de Thiago é diagnosticada com uma forma de autismo que, embora ele reconheça, também entende que é mais uma das coisas que compõe o seu ser. Ele lamenta alguns dos prejuízos causados pela condição, mas também transforma ela em uma maior conexão com o mundo de fora: suas corridas de 8km, suas idas às praias, seus passeios de ônibus, seus quadros pintados e comprados, tudo isso é atravessado por esse ser único e complexo que ele é.
Também não se pode deixar de destacar o espaço multiartístico de Thiago Prado e sua relação com a pintura. No decorrer de Mal Secreto, duas figuras inspiram demais o artista: Bruno, com quem ele troca caronas, pequenas compras e a vida e Nisete que descobri ser a grande Nisete Sampaio, artista plástica contemporânea com trabalhos com o abstracionismo e expressionismo.
Thiago incorpora dela uma ideia de arte como performatividade em que a própria ação de construção da obra e a existência enquanto se faz a obra já são, por si só, uma parte da obra. É importante mencionar também que o autor foi premiado por seu primeiro documentário, “Olhar Nisete Sampaio”, em que ele adentra o mundo recluso de Nisete em seu ateliê, no Rio de Janeiro, e revela, em fragmentos, a vida e a criação esplendorosa de sua mestra.
Em um trecho, inclusive, ele conta como estava pintando um quadro quando resolveu apunhalá-lo com a faca e, a seguir, rasgá-lo com os dentes. O resultado seria juntar os restos num potinho de vidro e exibi-lo assim mesmo, destruído.
Por fim, podemos dizer que “Mal Secreto” é um lugar em que Thiago Prado faz a si mesmo de laboratório e explora seu cotidiano, suas inspirações, suas referências, sua vida e seus sentimentos em busca de extrair dali uma forma de arte. Não escolheu a autoficção que anda tão batida e acertou em cheio. Entendeu que nada mais urgente que o presente e não mais intenso que a memória. Mas não aquela memória do passado, memória antiga, mas a memória dos dias que vão acumulando sensações, incorporando sonhos, desperdiçando chances. Ao fim, o autor escreve um belíssimo poema sobre a memória, trecho que acho que diz muito, mas para quem quiser ouvir:
Tudo
são memórias,
ontem, hoje e amanhã.
Que ninguém lhe roube nem um segundo
e que você não se curve nem por uns rublos.
Ninguém vai no caixão por mim,
senão este corpo,
que num instante sou eu,
até ser apenas mais um defunto.
Não me arranquem assim as vísceras
antes que eu esteja reconhecidamente morto.
É que toda palavra, também, chega ao fim. Talvez esse seja o verdadeiro mal secreto.