Atenção! leves spoilers de Armadilha
Armadilha é uma curiosa inversão dos trabalhos prévios do diretor M. Night Shyamalan. Em Tempo, os irmãos sobreviventes sacrificam, literalmente, anos das suas vidas para uma última brincadeira na areia, um último momento como crianças, já em Batem À Porta, Eric (Jonathan Groff) comete o sacrifício supremo para salvar sua família e o mundo. Na nova obra do diretor, o núcleo familiar e a ideia de sacrifício estão novamente em voga, mas a serviço de um elemento maligno. Não se trata mais de um protagonista que se sacrifica em prol de um bem maior, mas sim de alguém que não terá escrúpulos para se safar.
Pois Cooper (Josh Hartnett) é, acima de tudo, um bom pai que leva sua filha, Riley (Ariel Donoghue), para o show da artista preferida dela, a carregando no ombro para que ela possa ver a cantora melhor, fazendo trocadilhos ruins, as famosas “dad jokes”, e demonstrando preocupação com a vida social da jovem, que recentemente sofreu bullying de umas colegas da escola. A imagem da perfeição. Contudo, toda esta bondade é uma fachada: Cooper é um temido serial killer.
O que em outros filmes seria um plot twist, em Armadilha isso é revelado antes mesmo da informação do show ser um grande truque para capturar Cooper, também conhecido como O Açougueiro, ser explicitada. Assim como em A Sombra de Uma Dúvida, de Hitchcock, a graça não está em descobrir quem é o vilão da história, mas saber como outros personagens o pegarão, se é que vão conseguir tal coisa.
Shyamalan adiciona outra camada de diversão, pois tão interessante quanto saber se e como Cooper será pego, é ir descobrindo como e se ele irá escapar. A narrativa é desenvolvida pelo ponto de vista do personagem, e conforme ele vai percebendo o cerco se desenhando ao redor, acompanhamos o seu olhar que transforma o estádio em um complicado jogo de interações, visando o objetivo final. Os constantes travellings laterais e closes, acompanhando a perspectiva do personagem, nos forçando a perceber o espaço do estádio de outra maneira.
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Vale destacar aqui a escalação de Hartnett que, curiosamente, ocupa uma posição similar do seu papel no documentário Extermine Todos os Brutos, de Raoul Peck, onde ele era um símbolo de todos os homens brancos, e em Armadilha, sua posição social o faz ser visto sem desconfiança, pelo contrário: pelo simples fato de ser quem ele é, Cooper recebe confiança a níveis cada vez mais elevados.
Hartnett está ótimo no papel, e Shyamalan faz bom proveito do rosto do ator, com diversos closes onde podemos acompanhar suas microrreações, conforme ele se transmuta em bom pai, assassino encurralado, ou finge ser um amedrontado funcionário fugindo de um acidente, criado por ele mesmo, claro. Essa ideia do ‘típico homem branco’ é expandida quando a ação saí do estádio e vai para a casa de Cooper, onde conhecemos sua típica família americana, branca, com casa grande no subúrbio. Nesse novo espaço, o protagonista sai de predador para presa, e é frequentemente enquadrado de modo que reforça sua posição de “pai”, com sua família disposta como se fosse tirar uma foto familiar genérica, mesmo que a fachada esteja ruindo.
Apesar dos momentos finais de Armadilha não se sustentarem tão bem, especialmente por conta do foco demasiado em Lady Raven (Saleka Shyamalan), há ainda certo prazer em ver a narrativa se reinventando em novos espaços, propondo novas dinâmicas até o último momento e invertendo relações. Mais uma vez, Shyamalan reforça sua posição como autor, que transfere temas que são caros à sua filmografia para diversas situações, sempre buscando novas perspectivas.