No dia em que me sentei para escrever este texto, 8 de agosto, uma notícia passou pelas minhas redes sociais: “STJ nega HC para autorizar aborto de feto com síndrome genética grave”. Uma mulher não identificada, ao descobrir que seu feto possui uma doença cardíaca grave com alta probabilidade de morrer logo após o nascimento e com risco de vida para a gestante, teve seu pedido negado. O ministro Messod Azulay Neto afirmou que não é improvável que a criança sobreviva e que não foi suficientemente provado que a mulher esteja em risco.
“Não quero menosprezar o sofrimento da paciente. Estou fazendo uma análise absolutamente técnica, considerando que o nosso ordenamento jurídico só autoriza a realização do aborto terapêutico e o resultante de estupro, além do caso particular analisado pelo STF, que é o de anencefalia”, foi a justificativa. Há certa frieza na ideia de “analisar tecnicamente” uma questão que pode significar a morte de outrem. É fácil “ser técnico” com o corpo dos outros.
Incompatível com a Vida é, em parte, sobre o desamparo sofrido pelas mulheres que, por questões similares às do caso acima, tiveram que recorrer ao aborto pela via legal ou não. É uma obra que navega entre o pessoal, pois a diretora, Eliza Capai, enfrentou a mesma situação, e o geral, pois a cineasta traz o relato de seis outras mulheres em posição semelhante, que se viram diante de um sistema que, ultimamente, deseja controlar seus corpos sem oferecer nenhum tipo de proteção.
Esse controle acontece em diferentes escalas, como uma médica imediatamente sugerindo que uma das personagens abandonasse toda a sua vida para cuidar de uma criança que poderia existir ou não e, caso sobrevivesse ao parto, necessitaria de cuidados diários. Um aspecto que torna a narrativa do documentário ainda mais complexa é dar espaço para relatos que abordam ideias fixas de “maternidade” e, em menor grau, “paternidade”.
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Mais de uma mulher relata, por exemplo, sentir-se como se tivesse fracassado como mãe após descobrir o defeito congênito do feto, uma questão completamente fora do controle de qualquer pessoa. Um dos parceiros diz ter se sentido “menos homem” após o diagnóstico, mesmo sabendo que isso se trata de uma concepção machista.
Enquanto as pessoas lidam com essas dores, há também o contexto geral brasileiro, onde a médica insensível é apenas uma pequena parte do problema em que nem mesmo a realização de um aborto por meios legais garante qualquer tipo de segurança. Além dos relatos, Capai também amplia o escopo do filme, trazendo o caso da menina de 10 anos que, em 2020, precisou realizar um aborto após ter sido violentada pelo tio. As imagens dos conservadores na porta do hospital, tentando impedir o procedimento, são um reflexo de uma estrutura médica e jurídica que, fundamentalmente, não quer que mulheres tenham direito sobre seus corpos.
Incompatível com a Vida ilustra esses relatos com imagens melancólicas, dando corpo ao vazio e ao desamparo enfrentados por essas e outras mulheres brasileiras. O título do documentário se refere ao termo utilizado para fetos com doenças congênitas, mas também é possível apontar a postura do nosso sistema médico e judicial como sendo igualmente incompatível com a vida. Não há “posição técnica” que justifique tamanha crueldade.