Não é preciso dizer sobre a versatilidade do mito fáustico, presente em uma grande variedade de países e culturas diferentes, assim como em gêneros artísticos que vão desde a pintura, passando pelo teatro, tragédia e comédia, até às manipulações de bonecos, forma na qual Goethe afirma ter conhecido a história. É por conta dessa versatilidade que o mito vai se perpetuando e, justamente por isso, talvez seja interessante fazer algumas análises dessa narrativa a partir de vários tipos de plataformas midiáticas: teatro, cinema, televisão, quadrinhos, entre outros. Analiso agora a esquete “De acordo com o Diabo”, do seriado produzido pela rede Mexicana televisiva chamado Chapolin, do famoso comediante e humorista Roberto Gomes Bolaños, conhecido como Chespirito.
Bolaños ganhou o apelido Chespirito por conta da versatilidade e genialidade na escrita e na capacidade de criação de personagens e tipos que se inserem em várias culturas e passam a fazer parte do imaginário de crianças e adolescentes. Chespirito, em espanhol, significa “pequeno Shakespereare”, só para se ter uma ideia da magnitude que seu nome atinge como produtor de conteúdos culturais e de entretenimento, primeiro na América latina e, depois, para diversos lugares do mundo.
A sua adaptação de Fausto está inserida dentro de um episódio em que o anti-herói Chapolin tenta ensinar um sujeito que a ambição de nada vale. Assim, ele conta uma narrativa cujo tema é a história de Fausto. O Fausto de Bolaños, interpretado por ele próprio, é um velho de longas barbas e cabelos brancos que almeja o poder pelo saber e acha que para isso precisa de duas coisas: juventude e amor. Assim, faz um pedido lamentoso para que ganhe mais alguns anos de vida para realizar seus anseios.
É quando aparece Mefistófeles, interpretado por Ramon Valdez, que aparece de terno, bigodes, chifres e rabo. Fausto afirma não conhecer nem “esse senhor nem sua esposa.”Mefisto diz não ter esposa e Fausto, jocoso diz: “Não? E por que então os chifres?” Após um breve diálogo, o diabo se apresenta e ambos falam sobre o inferno que “está cheio de patrões, políticos e técnicos de futebol.” Logo em seguida, Mefistófeles oferece a Fausto uma varinha mágica, chamada de “Chirrin, Chirrion” que é capaz de fazer todas as coisas aparecerem e sumirem: Chirrin, elas aparecem; Chirrion, elas se vão. Como teste, Mefisto rejuvenesce Fausto em pelo menos 50 anos.
Fausto, interessado na varinha, assina o contrato em que sua alma ao fim da vida estará à disposição de Mefistófeles e, então, faz uso da varinha. Seu primeiro pedido é que traga Margarida, seu grande amor, para sua sala de estudos. Ela aparece e ambos resolvem fazer um jantar. No entanto, o mau uso da varinha gera uma série de pequenos enganos e desacertos, fazendo com que apareçam perus e loiros na mesa e que Margarida suma. Fausto, desconcertado, frustra-se. Numa última tentativa, clama: “que apareça Margarida ao lado do homem que ama.” Eis que ela aparece com outro rapaz, que diz ser seu noivo. Fausto se entristece e percebe que a varinha não lhe tem utilidade, uma vez que não é capaz de lhe dar o que necessita. Mefistófeles, no entanto, reaparece empunhando o contrato para cobrar a alma de Fausto que, sem titubear, diz: “Contrato, Chirrion”. O diabo chora e a esquete se encerra.
O que destaco de mais interessante na adaptação é o constante jogo de enganos que a mágica propicia: enquanto o universo de Fausto velho é equilibrado e tudo parece rumar para o sentido único da morte, a mágica desorganiza o mundo, imprimindo uma espécie de caos em que todos os seres são subjugados por essa ordem. Chespirito, culto, soube magistralmente compor um correspondente do famoso mito de Fausto para as telas. Destaco alguns elementos: o uso do ambiente da “sala de estudos”, pesada e dura, inapta para o convívio social; um diabo polido, educado, diplomático; uma Margarida inocente e joguete nas mãos da sorte; e, por fim, e acho que o mais marcante, um jogo de linguagem comum da comédia, um sotaque chiado de Fausto que atrapalha a comunicação entre ele e o resto das personagens. A repetição de sons em X como “Fausto, Mefistófeles (algumas vezes ficando como Mexistóxexes), Chirrion, Chirrion etc.
Não é a toa que Chespirito tem o apelido que tem e sobrevive às gerações. Coube a essa esquete, talvez, meu primeiro contato com a lenda de Fausto, ainda na infância. É por conta dessas breves atualizações das grandes narrativas num âmbito pop que elas se tornam marcas da identidade de um sujeito e assim o mito se reatualiza constantemente, tornando-se parte do imaginário cultural de nossa civilização. A separação entre Fausto e os homens, pelo visto, ainda é pequena e, tanto na comédia como nos dramas, ele ainda tem uma enorme força mítica e estética.
Vídeo do Episódio, caso você queira conferir: