10 melhores trechos de Meia-Noite e Vinte, de Daniel Galera

Daniel Galera é uma das grandes estrelas da literatura nacional contemporânea. Depois do aclamado Barba Ensopada de Sangue, o paulistano criado como gaúcho lançou em 2016 seu novo romance, o Meia-Noite e Vinte, no qual traça um retrato de uma geração marcada pelo boom da internet nos anos 90 e que não sabe exatamente para onde caminha neste começo de século. Você pode ler nosso registro de leitura do romance aqui e conferir abaixo os melhores trechos do livro.

O calor da rua, mesmo nos poucos segundos necessários para atravessar o quintal até a edícula, me massacrou de tal forma que perguntei se aquelas não seriam condições hostis à vida. A fragilidade do homem era tocante. (…) Éramos inadequados àquela natureza. Não espantava que desejássemos destruí-la.

Nessa carta eu lhe disse, basicamente, que Sísifo tinha sorte de ter vivido na Antiguidade. Se vivesse agora, saberia demais a respeito da pedra, da montanha, e de si mesmo para se entregar eternamente ao absurdo de sua tarefa. (…) Se fosse cria de nosso tempo, Sísifo leria O mito de Sísifo. (…) Nem nos deuses ele poderia seguir acreditando. Não restaria nem a obediência. Restaria somente a prisão, a mesmice da tarefa.

 

Um rato era um animal belo, se o considerássemos isoladamente, distante de outros ratos e de sua associação a doenças e pragas históricas. Um bichinho macio e curioso, inteligente à sua maneira, feroz quando ameaçado, uma criatura passível de ser admirada. A partir de determinada concentração, o horror brotava. Milhares de ratos devorando uns aos outros no porão de um navio abandonado à deriva era uma cena repulsiva, digna de filme de terror. Toda infestação de organismos tinha capacidade de causar terror no coração dos humanos.

 

Lia os exemplares da revista Superinteressante que meus pais assinaram para mim e queria ser como aqueles cientistas todos que estudavam hipercondutores e desenterravam dinossauros, mas não sabia ainda como chegar lá, simplesmente não sabia o que fazer da vida, e isso era bom, era excitante. Os anos passaram e, a partir de certo ponto, não saber o que fazer da vida passou a ser ruim, e havia algo muito pior, que era não querer fazer mais nada.

 

Eram os últimos momentos de um filme chamado Amores de estudante. (…) A três imagens, uma atrás da outra, não deviam durar nem cinco segundos. Primeiro víamos Keaton e a esposa em casa com os filhos pequenos, cuidando de tarefas domésticas. Depois víamos os dois bem velhinhos, sentados lado a lado em cadeiras de balanço. Depois dois túmulos. E depois o cartão onde estava escrito “Fim”. Eu achava aquele final apavorante. (…) O filme terminava, com efeito, antes daqueles três planos. Quando o casal saía da igreja, já tinha acabado. Era a tragédia secreta do filme, seu subtexto cifrado, um aceno para o absurdo da vida.

 

A morte inesperada de Andrei era um tiro de bazuca na pasmaceira do undo literário brasileiro, basicamente um pátio de recreio em que as crianças mimadas com ranho saindo do nariz deduravam o narcisismo despolitizado umas das outras. Duque não tinha tempo para essas merdas. Limitava-se a publicar livros que não podiam ser ignorados.

 

‘Nossos clientes não são exatamente libertinos confinados numa torre. São hiperconsumidores condenados à liberdade no capital cada vez mais acelerado. Mas a tecnologia digital os condiciona a converter seus desejos em informação recombinável, resultando nessa mediação de tudo, nessa busca do esgotamento das possibilidades. Nenhuma experiência humana, nem mesmo a arte, escapa desse processo.’

 

‘Sai a intensidade, entra a quantidade. Sai o sublime, entram os padrões. (…) A beleza que surge é a beleza dos padrões, das formas de arquivamento, dos algoritmos, das montagens e dos contrastes extraídos do excesso de informação. Nesse novo mundo não existe a menor possibilidade de transgressão e transcendência. Não existe nenhuma verdade adormecida sob a superfície. As flores que podem nascer em tanto excesso morrem de um dia para o outro.’

 

E estava aí, percebi de repente, o cerne da ansiedade. A ciência era o carburador daquele mundo cada vez mais rápido e mais cheio de gente, gente que vivia cada vez mais e consumia cada vez mais o que era produzido por uma indústria também respaldada pela ciência, e a ideologia de tudo era mais lucro, sim, mas também mais vida, mais e mais vida, quando o que sentia desde a visita a Porto Alegre era o oposto, a convicção visceral de que já tínhamos passado do ponto havia muito tempo, que os milagres científicos e tecnológicos, caso chegassem, pois nem isso era garantido, apenas pisariam mais fundo no acelerador para gerar mais consumo, mais gente, mais vida.

As convicções que sempre tive como cientista e mais especificamente como bióloga iam sendo chacoalhadas, não por ideias diferentes, mas por sentimentos como medo e ansiedade. O nosso mundo, eu começava a suspeitar, não estava acabando nem avançando. Estava em estase. Era bem possível que ficasse estagnado, preso na condição de estar morrendo para sempre. Quando eu pensava nisso, a raiva, o medo e a ansiedade que me impeliam à ação ou à fuga às vezes cediam lugar a uma passividade que não deixava de ser agradável, se comparada com o resto.

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