Quando “Victor Hugo, O Grande” – assim apelidado por seu grande inimigo político, Napoleão III, em resposta ao poema de protesto de Hugo que o imortalizou como “Napoleão, o Pequeno” – morreu em 1885, Paris parou; mais de dois milhões de pessoas se reuniram para a procissão funeral desse grande homem que se tornou famoso como um dos maiores franceses da história – um monumento nacional que, como escritor, intelectual e político, se tornou conhecido no mundo inteiro e moldou a história da França. O que muitos não sabiam é que, além dessas coisas, Victor Hugo também era artista visual.

Durante boa parte do século XIX, Victor Hugo foi muitas coisas: romancista, poeta, parlamentar, exilado político, ícone nacional— mas, discretamente, também foi desenhista e pintor. Não no sentido institucional da palavra, mas em algo mais íntimo, mais secreto. Hugo desenhava e pintava – tão bem que hoje em dia suas ilustrações muitas vezes figuram ilustrando suas obras, e duas de suas pinturas são famosamente usadas como parte do cenário do célebre musical de “Os Miseráveis” no West End – tanto em papel e tela como, com mais frequência, às margens de seus manuscritos. Hugo desenhava desde a infância, e na vida adulta sua obra foi admirada por grandes artistas, como Vincent Van Gogh e Antony Gormley.
Coisas Assombrosas: O artista Victor Hugo
Muitos de seus desenhos são estranhos, da melhor maneira possível: castelos que não existiam, paisagens submarinas, monstros marinhos, cruzes isoladas no horizonte, homens enforcados que flutuavam sobre o papel como sombras de um mundo que ainda não sabia como nomear. Ele criava figuras abstratas, o universo natural da maneira mais fascinante e estranha, e fazia isso sozinho, à noite, com tinta, carvão, fuligem e até café. Hugo disse que a inspiração para os desenhos chegava após “horas de devaneio quase inconsciente”. Com incomum modéstia – Hugo é conhecido por na infância ter dito que seria “Chateaubriand ou nada” -, ele protestava os elogios à suas criações: “As pessoas insistem em chamar de desenhos [coisas] feitas nas margens ou nas capas de manuscritos durante horas de devaneio quase inconsciente, com o que restava de tinta na minha pena”.
Ainda assim, a crítica especializada considera seus desenhos – modernos, muitas vezes experimentais, com elementos abstratos e detalhes finíssimos e extremamente precisos – indicativo de um talento imenso para a arte, que, se tivesse sido desenvolvido, teria feito de Hugo um dos grandes. E agora, mais de cinquenta anos depois da última vez em que seus desenhos foram exibidos no Reino Unido, a Royal Academy of Arts os reúne em Astonishing Things — uma exposição cujo nome – dado em homenagem ao comentário de Vincent Van Gogh, que, vendo os desenhos de Hugo, os elogiou como “coisas assombrosas” – não poderia ser mais justo.
O que há ali, de fato, são coisas assombrosas. Não apenas pelo conteúdo — embora o conteúdo também seja —, mas sobretudo pela maneira como se apresentam. As obras foram produzidas em silêncio, longe dos salões públicos e da crítica especializada, sem nenhuma ambição de fazer escola ou se adequar à um movimento. E, no entanto, foram elas que encantaram simbolistas, impressionaram surrealistas e levaram historiadores da arte e críticos atuais a dizerem que, se tivesse escolhido ser pintor, Victor Hugo provavelmente teria sido um dos maiores. São desenhos que parecem sonhados e esquecidos, recuperados por acaso de um arquivo secreto da história da arte.
Homem-Oceano: Victor Hugo, desenhos e literatura
A exposição começa com caricaturas feitas nos anos 1830, rabiscadas para entreter amigos e familiares, e logo migra para cadernos de viagem — fragmentos de uma curiosidade que se desdobra em torres, arcos, igrejas, pontes. Victor Hugo prestava atenção aos detalhes, e em particular à arquitetura: daí vêm as igrejas e, sobretudo, os castelos. Muitos castelos. Alguns reais, mas a maioria não: estruturas fabulosas, tortuosas, empilhadas sobre si mesmas, tão impossíveis quanto poéticas. Em The Cheerful Castle, por exemplo, o traço de Hugo constrói um amontoado de torres brilhantes contra um céu claro. Já em The Castle with the Cross, tudo se escurece: a construção é reduzida a uma silhueta negra, um ícone gótico cercado por neblina e abismo.
É difícil separar a obra do exílio. Entre 1851 e 1870, Hugo viveu nas Ilhas do Canal, banido por sua oposição feroz a Napoleão III. Foi lá, em Guernsey, que reformou inteiramente sua casa, transformando-a numa espécie de instalação viva — com painéis pintados à mão, lareiras desenhadas por ele próprio, e um mirante de onde se via o mar como quem olha para o inconsciente. E foi lá, também, que escreveu Os Trabalhadores do Mar, romance que dialoga diretamente com uma série de desenhos feitos nesse mesmo período: navios fantasmas, tempestades negras, criaturas marítimas indefinidas, sombras de gaivotas e naufrágios suspensos. Hugo desenhava como quem tenta manter a sanidade. Ou como quem precisa, no traço, encontrar alguma ordem num mundo devastado.
Entre as peças mais perturbadoras estão aquelas em que a política se infiltra no papel com força brutal. Hugo era abertamente contra a pena de morte, e após a execução de John Tapner — um condenado à forca em Guernsey —, produziu desenhos marcantes de enforcados, como Ecce Lex (1854), cujo título em latim (“eis a lei”) escancara o sarcasmo lúgubre do autor. Mais tarde, as imagens seriam reimpressas com novo título: John Brown, em protesto à execução do abolicionista norte-americano. Nessas obras, a estética se confunde com o protesto, como tão frequente acontece com Hugo.
É interessante ver como os desenhos de Hugo se relacionam com sua obra, tanto em tema quanto em temporalidade: o amor por arquitetura, tema central de Notre Dame de Paris (O Corcunda de Notre Dame), é visto de novo e de novo em seus muitos castelos e igrejas, que tão frequentemente aparecem em seus livros: uma catedral gótica é a verdadeira protagonista de sua obra prima da juventude, enquanto a figura de castelo surge nos sonhos da pequena Cosette em Os Miseráveis. Que a maior parte de seus desenhos arquitetônicos, sobretudo com foco no estilo gótico, surjam nos anos 1830-40 não é surpreendente: Notre Dame de Paris foi publicado em 1831. No exílio entre 1851 e 1871, a temática dos desenhos migra para tempestades, oceanos, monstros marinhos, naufrágios e o mundo natural – elemento central de Os Trabalhadores do Mar, publicado em 1866. O desenho de um homem enforcado dialoga assombrosamente com Os Miseráveis, publicado em 1862, mas escrito ao longo de muitos anos no exílio, não apenas pelo tema central da lei e da justiça, mas também pelos comentários de Victor Hugo à respeito da pena de morte na mesma obra.
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Veja alguns desenhos aqui:
Le Tour Des Rats (A Volta dos Ratos) (1845)

Da fase de viagens / arquitetônica de Hugo. A medida que desenvolvia sua técnica, Hugo passou a experimentar com novos materiais, usando tinta diluída, grafite, carvão e mesmo borra de café. Esse desenho, feito com caneta, tinta marrom diluída, lápis de grafite, tinta preta e carvão, traz uma torre, um vale, o céu e o mar em monocromático.
The Cheerful Castle (O Castelo Alegre) (1847)

Também de sua fase arquitetônica. Hugo teve uma obsessão por castelos pela vida toda, e embora desenhasse alguns castelas reais, cada vez mais passou a produzir imagens de castelos imaginários, como seu The Castle With The Cross, um desenho atmosférico e sombrio onde o castelo surge como uma silhueta em tinta preta, ou o The Cheerful Castle mostrado acima – um desenho ensolarado onde um castelo brilhante surge contra um céu claro e azul com uma elaborada coleção de torres.
The Vision Ship or The Last Struggle (O Navio-Visão ou O Último Esforço)(1864-66)

Durnate seu exílio na Inglaterra (Channel Islands), o mundo natural e em particular o oceano e seus desastres e mistérios se tornaram uma das principais fontes de inspiração para Hugo, tanto na escrita quanto nos desenhos. Ele colocou um “observatório” no andar mais alto de sua casa para ter uma visão panorâmica do mar. Foi nessa época que ele escreveu Os Trabalhadores do Mar, a história de uma comunidade de pescadores em Guernsey. O livro, que de acordo com o próprio Hugo tratava da luta entre homem e natureza, inclui tempestades marítimas, naufrágios e monstros marinhos – todos elementos frequentes nos desenhos de Hugo do mesmo período, como o desenho acima. Ao longo de sua carreira, Hugo muitas vezes foi dito um “homem oceano” – um termo cunhado por ele próprio para se referir aos gênios literários admirados por ele. “Olhar para essas mentes é a mesma coisa que olhar para o oceano”, ele explicou.
Ecce Lex ou Le Pendu (Eis a Lei ou O Enforcado) (1854)

De todos os adjetivos atribuidos à Hugo, “Político” certamente é o mais frequente e certeiro deles. O tema da justiça é particularmente frequente em todos os livros de Hugo, que fala do Direito, da Lei, mas também da filosofia por trás deles, e das diferenças entre o que é certo e o que é legal. Hugo mudou de opinião política radicalmente após uma juventude monarquista, e além de tornar-se um republicano ferrenho, também passou a vigorosa e vocalmente opor-se à pena de morte – em Os Miseráveis, ele descreve a guilhotina como um monstro que devora carne humana, e declara que ao redor dela se levantam todas as interrogações dos problemas sociais; é impossível permanecer neutro no tema diante de sua visão.
Após a execução por enforcamento do assassino convicto John Tapner em Guernsey, Hugo fez uma série de desenhos de um homem enforcado – famosamente, Ecce Lex (‘Eis a lei’), uma referência ao ‘Eis o homem’ bíblico. Mais tarde, Hugo apelaria (sem sucesso) para que os Estados Unidos perdoassem o abolicionista John Brown, condenado à morte na Virgínia por traição, assassinato, e conspiração para incitar uma insurreição de escravos. O cunhado de Hugo, Paul Cheney, mandou imprimir diversas reproduções de desenhos da “série” Ecce Lex de Hugo, publicando-as com o título John Brown para serem circuladas em protesto à execução de Brown.