O Andante é um texto poético, que conta a história de um andarilho, catador de livros, reciclador de poesias, carroceiro das palavras. Perdido dentro de si, entre o real e o imaginário. Um homem imerso em seus pensamentos e sentimentos, falando verdades de uma maneira quase filosófica. Com sua inquietação, O Andante provoca quem o ouve, instigando a discussão das verdades estabelecidas pela sociedade. A linguagem poética do texto, também relembra a necessidade da leitura e da arte.
Existem dramaturgias que exigem muito de nós em sua compreensão e atenção, O Andante de Elias Andreato, na minha opinião, é um desses textos. A dramaturgia de O Andante, ao apresentar um andarilho que transita entre o real e o imaginário, reciclando palavras e desafiando verdades estabelecidas, encarna o sublime kantiano — essa experiência estética que, segundo Kant, nos confronta com o que excede a razão, como o abismo da natureza ou o infinito — ao provocar no espectador uma experiência de desorientação e transcendência. Assim como O Sublime, em Kant, emerge diante do informe e do inatingível (o infinito matemático ou a força avassaladora da natureza), o texto poético da peça, com sua linguagem fragmentada e ideias complexas, excede os limites da compreensão imediata, gerando um “prazer doloroso”: a frustração diante do incompreensível é seguida pela elevação ao perceber que a linguagem, como a razão em Kant, pode apontar para algo maior que si mesma. O Andante, em sua figura errante e caótica, torna-se assim um operador do sublime, transformando palavras descartadas em enigmas que confrontam o público com os próprios limites do pensamento e da arte.

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Rodrigo Nascimento, ao encarnar o andarilho-poeta, realiza uma performance que oscila entre o lúdico e o trágico, materializando o sublime kantiano não apenas no texto, mas no corpo e na voz. Sua atuação, que transita da inocência infantil à agonia existencial, funciona como um vetor de contradições: a fragilidade do gesto contrasta com a potência das palavras recicladas, enquanto sua entrega física traduz o “prazer doloroso” do sublime. Nascimento não representa o personagem, ele o habita, transformando a dificuldade do texto em presença viva, e é nesse jogo de vulnerabilidade e força que a peça alcança seu ápice, fazendo do público não um decifrador de enigmas, mas um cúmplice da experiência estética. A emoção que sua performance provoca não vem da clareza, mas justamente do mistério que resiste à interpretação, ecoando o inefável que Kant atribui ao sublime.
A cenografia de Rodrigo Nascimento, composta por biombos modulares repletos de poemas, transforma o palco em um corpo textual expandido, onde a materialidade das palavras dialoga com a efemeridade da performance, reforçando o tema da reciclagem poética. A iluminação de Rodrigo de Souza, ao “dançar” com esses elementos cenográficos, não apenas delineia espaços, mas cria atmosferas líquidas, oscilando entre a claridade racional e a penumbra onírica, espelhando a dualidade kantiana do sublime — onde a desorientação luminosa revela, paradoxalmente, novos horizontes de sentido. O figurino de Ray Feitosa, com suas tonalidades terrosas e referências expressionistas (como O Grito), veste o andarilho como uma paisagem em crise, um ser que é ao mesmo tempo solo e tempestade, arraigado e errante.

Eduardo Guimarães demonstra uma notável sensibilidade ao equilibrar os elementos poéticos e filosóficos do texto, criando uma encenação que evita tanto a armadilha do hermetismo intelectual quanto a da teatralidade excessiva. Sua direção navega com maestria entre os polos opostos da peça – o lúdico e o trágico, o concreto e o onírico – estabelecendo um ritmo pulsante que mantém o espectador em constante estado de descoberta. Ao invés de impor uma leitura única, Guimarães tece uma rede de significados onde texto, atuação e elementos cênicos dialogam em perfeita sintonia. Sua maior conquista está em transformar a complexidade do texto numa jornada sensorial, onde a aparente desconexão dos elementos revela-se, no todo, como uma cuidadosa arquitetura de sentidos.
O Andante se consagra como uma experiência teatral total, onde poesia, filosofia e encenação fundem-se numa poderosa reflexão sobre os limites da linguagem e da compreensão humana. A peça não se contenta em ser assistida, exige ser vivida, desafiando plateia e artistas a se perderem nos labirintos do sublime para, quem sabe, reencontrarem-se transformados. Entre a dor e o êxtase do incompreensível, o espetáculo de Elias Andreato, na brilhante condução de Eduardo Guimarães e na performance visceral de Rodrigo Nascimento, ergue-se como um monumento à potência rebelde da arte: aquela que, ao nos desorientar, nos reorienta; que ao fragmentar as certezas, nos oferece a rara oportunidade de reconstruir-nos.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Elias Andreato
Direção: Eduardo Guimarães
Assistente Direção: Anna Grecco
Elenco: Rodrigo Nascimento
Figurino: Ray Feitosa
Iluminação: Rodrigo de Souza
Trilha Original: Anderson França e Pan
Cenografia: Rodrigo Nascimento
Produção Administrativa: Camila Laczko
Fotos e Vídeo: Kim Lee