Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, é o maior fenômeno literário do século XXI no Brasil. E isso não é pouca coisa, haja visto que a literatura por aqui não é desses temas que costumam se tornar fenômenos. Confesso que lutei bravamente contra o ímpeto de ler o livro durante a hype, tanto por desconfiar da obra quanto para evitar que minha leitura fosse contaminada pelo excesso de informações que se viam sobre ela. O resultado é que, quando li, me provei errado.
O livro é muito bom e pode servir como diagnóstico para entender o nosso tempo: ele reúne diante de si uma série de elementos que são a marca de nossa contemporaneidade.

Dentre os principais assuntos: a história volta para mulheres, discussões sobre o racismo e as consequências de uma escravidão que termina, mas não acaba em nosso país, as relações de poder, de gênero e, principalmente, a ideia de que todas as pessoas oprimidas se parecem e, por isso, formam uma grande comunidade de resistência.
Quando vi que haveria um musical de Torto Arado, fiquei logo curioso para ver como todos esses elementos seriam distribuídos em cena, principalmente se tratando de um musical. Eis que tive o prazer de assistir Torto Arado – O Musical no Teatro Riachuelo, o Rio de Janeiro, e tive uma das maiores experiências teatrais da minha vida.
A peça mantém fielmente a narrativa de Itamar Vieira Junior sobre a história das duas irmãs, Bibiana e Belonísia, que vivem em condições análogas à escravidão numa fazenda no sertão baiano e sofrem um acidente de infância em que uma delas se torna muda. Diante desse acidente, as duas costroem uma relação profunda em que uma é a voz da outra e, mais que isso, em que uma escuta as dores do silêncio da outra.
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A estrutura do espetáculo é simples: uma espécie de tablado de madeira inclinado que delimita o espaço cênico em que quase todas as ações vão acontecer. Ao fundo, temos algumas escadas que permitem o acesso à parte mais alta, por debaixo alguns calabouços para entrada de personagens diretamente por esses vãos e lá atrás um ciclorama que vai nos dando tons e cores de uma cena dinâmica que atravessa décadas da vida das duas mulheres.
A direção e dramaturgia de Elísio Lopes Jr. tem como papel não permitir que a peça se tornasse mera narração, replicando os moldes do romance, mas compusesse pequenos núcleos de tensões dramatúrgicas que iam alternando-se: o passado místico da família, as disputas amorosas das irmãs e a luta pelo direto à terra frente aos fazendeiros. Esses campos narrativos vão se alternando de modo que, aos poucos, todos eles se tornam parte de uma coisa só: uma vida precária cuja precarização não é um fato da realidade, mas um dado construído pela exploração e que, por isso, precisa se organizar na luta por liberdade e direitos.

O auge do espetáculo, a meu ver, está nas composições. A direção musical com composições inéditas assinadas por Jarbas Bittencourt fazem jus às canções dos musicais de Chico Buarque. É impressionante como cada uma delas se torna uma espécie de hino que registra em forma de poesia as agruras e sofrimentos de suas personagens.
Juntando tudo isso com um elenco primoroso, com destaque para a avó Donana, interpretada por Lílian Valeska e a dupla de irmãs feita por Larissa Luz e Bárbara Sut (com stand in de Cainã Naira), o que temos é, sem dúvida, um dos melhores espetáculos dos últimos anos.

Frente à grandeza da ancestralidade negra, da luta constante contra a opressão dos corpos pretos, Torto Arado – O Musical se torna um hino que reúne pessoas em torno dessa luta, além de reorganizar lutas que até então estavam dispersas. Um espetáculo marcante não só pela importância, mas porque sua importância está também em sua estética: a força da arte ainda é a melhor forma de ecoar lutas que podem transformar a realidade.
Assistam, indiquem e se emocionem. Agora, eu só espero que lancem as canções em álbum para a gente poder ouvir também de casa.
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