“Um Cavalheiro em Moscou”: como a série se compara ao romance de Amor Towles?

A adaptação do celebrado romance de Amor Towles, “Um Cavalheiro em Moscou”, uma série de TV de 8 episódios da Paramount+, convida a audiência a visitar uma tapeçaria intrincada da vida incomum de um homem na Rússia pós-Revolucionária: um obstinado aristocrata condenado a viver seus dias no Hotel Metropol. O streaming traz essa emocionante história para a tela, estrelando Ewan McGregor e Mary Elizabeth Winstead, e oferecendo uma odisseia visual através da tumultuosa evolução da União Soviética na primeira metade do século XX. A adaptação, embora com muitos méritos próprios, se encontra em uma encruzilhada entre manter a profundidade original da narrativa e se adaptar às demandas de uma série de TV.

O equilíbrio delicado entre o confinamento poético do protagonista do livro e a busca da série por uma história mais sombria e cheia de conflitos é um desafio que a adaptação nem sempre consegue encarar, levantando questões a respeito da tradução da profundidade literária para as necessidades da tela. Apesar de suas muitas qualidades – é, certamente, uma série que vale a pena ser assistida – a adaptação falha em verdadeiramente encapsular a delicadeza e o charme da obra prima de Towles, em boa parte pelas naturais dificuldades de representar uma jornada majoritariamente introspectiva para um novo meio, com parte de sua essência necessariamente sendo perdida na tradução. 

O livro original

O livro de Amor Towles conta a história do Conde Alexander Rostov, um aristocrata russo que vive no Hotel Metropol, um elegante estabelecimento no coração de Moscou. Com a Revolução Russa, Alexander é condenado à morte – mas escapa por pouco, pois em sua juventude, durante a revolução de 1905, ele teria escrito um famoso poema intitulado “Onde está agora?”, onde criticava o governo do Czar e insuflava o leitor à ação. Assim, ao invés de ser fuzilado, o Conde é sentenciado à prisão domiciliar e perpétua no Hotel. A partir daí, Towles desenvolve uma história tocante sobre amizade, família, resiliência e, acima de tudo, sobre encontrar a felicidade nos lugares mais inusitados, enquanto leva seu leitor por mais de 30 anos da vida de seu protagonista – e da história da primeira metade do século XX –, tudo sem sair do hotel.

Junto com Alexander, Towles também apresenta um elenco de personagens apaixonantes, todos com uma característica específica que os define, tal qual um conto de fadas ou fábula: Anna Urbanova, uma estrela de cinema que parece um salgueiro; Nina Kulikova, uma menina precoce – e também residente do Metropol – que tem predileção por amarelo; Óssip, o oficial soviético que quer aprender a ser um cavalheiro – e é apaixonado por filmes de Humphrey Boggart; Marina, a costureira vesga; Andrei, o maitre com dedos de malabarista; Mischka, o fervoroso intelectual bolchevique que não sabe falar sem andar de um lado para o outro; Emile, o cozinheiro com seu cutelo sagrado; Vasili, o porteiro que sempre sabe onde todos estão; Sofia, uma jovem e prodigiosa pianista com uma mecha de cabelo branca; Leplevski, o garçom com amigos poderosos no partido que lembra um bispo do xadrez, e tantos outros personagens – o jornalista americano, o criador de abelhas, o casal em um primeiro encontro, o barman, o turista, os carregadores de malas, o gerente que nunca é visto trabalhando, mas está sempre muito ocupado.

O Hotel Metropol, central para a narrativa, passa de um luxuoso espaço aristocrático para um símbolo da autoridade soviética. A vida de Rostov, que é confinado a um pequeno quarto no sótão, contrasta visivelmente com seu anterior glamour, espelhando a mudança social que ocorre. A justaposição da jornada pessoal do Conde contra o cenário de eventos históricos oferece à audiência uma rica tapeçaria de personagens e pequenas histórias, todas costuradas em uma só.

A adaptação

A série, estrelando Ewan McGregor – o eterno Obi-Wan Kenobi -, estreou na Paramount+ no dia 17 de junho, com recepção calorosa do público. Com oito episódios, ela resume bem a história do Conde Rostov, passando com facilidades de 1921 até a década de 1950, e apresentando o espectador para o grosso da narrativa construída por Amor Towles.

Como produto individual, é uma série excelente. Como adaptação de um livro, mediana, mas ainda assim acima da média em termos do que, nos dias de hoje, podemos esperar de versões para cinema e TV de livros célebres. A série é divertida, inteligente e comovente por si própria, e é provável que apenas os leitores do livro original encontrem motivo para críticas – mas, ainda assim, reitero que mesmo eles vão aproveitar a jornada.

A adaptação tencionava manter a essência do trabalho de Amor Towles, de acordo com o showrunner Bem Vanstone que, em conjunto com os produtores executivos Tom Harper e o próprio McGregor, disse buscar preservar a rica narrativa do romance ao adaptá-la para o meio visual. Apesar desses esforços para se manter fiel à fonte, porém, a série introduz diversas mudanças. Por exemplo: no livro, a irmã de Alexander tem um papel muito importante no passado da personagem. Embora o mesmo aconteça na série, isso é feito de maneira muito mais dramática e visual, alterando significativamente as motivações do Conde. A narrativa poética e introspectiva do livro é desafiadora de se representar nas telas, levando a uma abordagem mais exteriorizada na série.

Amor Towles, que também foi produtor executivo da série, reconhece as dificuldades de adaptar uma história tão interna e voltada para o personagem para a televisão. Ele expressa satisfação com o design da produção e a representação fiel do Hotel Metropol – coisas que o teriam convencido da direção que a série tomou. Towles já declarou apreciar os esforços da adaptação em capturar visualmente a essência de seu trabalho, apesar das diferenças naturais entre os meios.

Os problemas da série enquanto adaptação não estão tanto naquilo que é cortado – afinal, todos sabemos que é necessário fazer cortes, seja por questões de praticidade, tempo ou dinheiro, ao adaptar obras literárias para as telas, e embora os cortes sejam uma pena para os leitores que sentirão falta deles, em sua maioria não tem grande impacto na história mais ampla – mas naquilo que é acrescentado ou alterado.

A produção da Paramount+ buscou dar um ar mais sombrio à história, com maior ênfase na política russa da primeira metade do século XX e no lado sombrio de viver sob o governo Stálin – a repressão, a perseguição política, o eterno clima de nervosismo. O livro, embora se passe ao longo de décadas da história da Rússia e do mundo, não dá muita atenção a esses tópicos, preferindo focar na vida no interior do Hotel Metropol e, sobretudo, naquilo que se passa no interior da cabeça do Conde. Por ser um homem que acredita que “a verdadeira marca da sabedoria é o bom-humor constante”, isso se presta, é claro, para uma história mais leve do que o padrão de um drama sobre a Rússia stalinista para TV.

A jornada de Alexander Rostov

O Alexandre Rostov da Paramount é menos “espiritualmente elevado” que sua contraparte literária. Ele tem maior dificuldade em se adaptar às suas circunstâncias, e é um personagem marcadamente mais conservador e teimoso que o original. Isso é mostrado em momentos grandes – como a ocasião, totalmente inventada para a série, em que Rostov dá um jantar luxuoso em homenagem à sua avó falecida, e se irrita quando nenhum convidado comparece, chegando ao ponto de jogar a louça e os copos no chão em um ataque de fúria pouquíssimo característico do fleumático Rostov de Towles – e pequenos – como quando o Conde da série finalmente “percebe” a existência de Marina, a camareira que arrumava seu quarto, enquanto o Conde do livro já era amigo dela havia bastante tempo (numa das primeiras cenas da obra de Towles, inclusive, ela é uma das convidadas que “inauguram” o novo quarto do Conde para beber em homenagem à sua sobrevivência.)

Essa mudança faz dele uma personagem que pode, por vezes, parecer menos agradável para a audiência do que sua versão das páginas, cuja aceitação magnânima de sua nova vida e prontidão para se adaptar à nova realidade são alguns de seus mais admiráveis traços. É essa fleuma e essa magnanimidade que faltam, de fato, ao Rostov de McGregor, e que diminuem consideravelmente a grandeza do personagem e, por consequência, a qualidade da narrativa como um todo. O Conde da TV está constantemente em conflito com seus amigos e consigo mesmo por insistir em certas arrogâncias que jamais teria cometido no livro – insultar, sem querer, a atriz Anna Urbanova; se distanciar de seu melhor amigo, Mishka; brigar com Nina Kulikova.

Mas essas mudanças são compreensíveis: afinal, o livro de Towles não tem muita ação. Ele depende largamente dos pensamentos do Conde para seguir sua narrativa, e tem um viés muito mais filosófico, voltado para pequenas reflexões sobre a natureza da vida e da existência humanas, salpicada com eventos cômicos aqui e trágicos ali, e alguns toques de maior drama – uma trama de espionagem, a prisão de um amigo – no meio de tudo isso. A personalidade de Rostov no livro não se presta tanto a uma série de TV, exatamente por sua maneira de movimentar a narrativa ser muito relacionada às suas próprias opiniões e lembranças, a monólogos internos e pequenos comentários de humor.

Assim, faz sentido que a versão para as telas tenha decidido por um Rostov com mais falhas, mais teimoso, arrogante e com um caminho maior para percorrer na busca da aceitação e da paz com suas circunstâncias. Na adaptação, o Conde Rostov passa por um desenvolvimento de caráter significativo, transitando de uma vida aristocrática para uma de simplicidade forçada no confinamento do Hotel. Inicialmente representado com um charme um tanto quanto afetado – diferente da elegância mais verdadeira de sua contraparte literária – a personagem do Conde evolui, refletindo uma compreensão mais madura e cheia de nuances de suas circunstâncias e das pessoas ao seu redor.

Essa evolução é marcada por interações com figuras chave, e com os desafios que ele enfrenta, mudando sua visão do mundo e tornando-o mais adaptável, em contraste com o personagem mais estático – exatamente por já ser uma pessoa mais “evoluída”, e por vezes mais agradável, desde o princípio – do romance.

Leia também: 18 livros para o século XXI: Os melhores do século de acordo com os colaboradores do Nota

As personagens secundárias adicionam camadas vibrantes à narrativa, com figuras como Nina e Anna se provando fundamentais na vida de Rostov. Nina, uma menina com uma chave mestra, apresenta o Conde a aspectos escondidos do hotel, simbolizando sua jornada do isolamento para uma existência mais conectada. Anna Urbanova, uma atriz que captura o interesse de Alexander, o ajuda a se tornar uma pessoa melhor. Suas interações, cheias de trocas dinâmicas nas quais Anna com frequência faz o Conde repensar opiniões e atitudes, são bastante diferentes do relacionamento dos dois no livro, onde é Alexander que frequentemente se prova a pessoa mais madura da relação e ajuda Anna a rever algumas coisas a respeito de sua própria vida. 

Relacionamentos platônicos e românticos são centrais para o desenvolvimento do personagem de Rostov na série. A representação dessas relações apresenta uma expressão mais externalizada do personagem de Rostov, diferindo do estilo narrativo largamente introspectivo do livro. Adicionalmente, suas relações de amizade – com Ossip, com Mischka, com Nina e mesmo com Sofia – são vítimas de muito mais conflitos, desentendimentos e complicações do que as relações largamente agradáveis e poéticas do romance.

O Hotel Metropol e a Rússia de Stálin

A adaptação representa o Metopol não apenas como um cenário, mas como um microcosmo da União Soviética durante um período de intensas transformações políticas e sociais. A transição do hotel sob o governo Soviético e sua proximidade com a Lubyanka, o quartel-general da NKVD, adiciona camadas de tensão e profundidade à história, ainda que com um tom sensivelmente mais sombrio que o do livro, refletindo a necessidade da série de conflitos mais óbvios.

Em seu livro, Amor Towles incorpora a sátira sutil através de sua representação da terminologia utilizada pelo Partido, dos comportamentos oportunistas e hipócritas de personagens se adaptando à nova ordem social, e das muitas similaridades do novo mundo com o velho. O romance critica de maneira inteligente a retórica política da época e o absurdismo de algumas de suas aplicações práticas – como no momento em que é ordenado que todos os vinhos do Hotel tenham seus rótulos retirados em prol da equidade.

Essa camada satírica adiciona níveis de profundidade à narrativa, oferecendo uma crítica do cenário político-social do período, e ao mesmo tempo permite uma representação de Alexander como um homem inteligente e magnânimo, que consegue observar a realidade ao seu redor e encontrar humor no absurdo e na hipocrisia sem, contudo, se tornar uma pessoa tacanha ou apegada ao passado: ele entende seu novo lugar no mundo, e não se ressente dele.

A série tem maior dificuldade nesse campo, e o humor sagaz do Rostov literário é substituído por críticas muito mais óbvias, contundentes e dramáticas ao regime, recheando a história de injustiças, execuções, assassinatos, corrupção e pequenas humilhações diárias que tornam o espírito geral da narrativa bem mais deprimente. A série se posiciona, assim, como abertamente anti-soviética, enquanto o livro tende muito mais a ser um ponderado “anti-imbecilidade” de maneira geral.

A escrita de Towles mantém um tom de civilidade gentílica, um contraste com a brutalidade do regime stalinista do lado de fora das paredes do Hotel. A escolha de Towles de ocasionalmente permitir que os tumultuosos eventos externos se misturem com a história de Alexander aumenta a sensação de, simultaneamente, isolamento e santuário que o Metropol dá. A série, por sua vez, centraliza os eventos da época, fazendo com que os muitos dramas do início do século XX adentrem as portas do Metropol pelo menos três vezes por episódio – no formato de soldados, fugitivos, funcionários públicos, jornalistas e pessoas prestes a serem condenadas à morte, exílio ou prisão. Na versão televisiva, o Metropol não é uma ilha de calma no meio da tempestade: ele está no olho do furacão.

A estrutura narrativa do livro é intrincadamente construída, desenrolando-se ao longo de décadas dentro dos limites do Hotel. Essa cadência é caracterizada por uma acumulação detalhada de descrições, eventos e personagens que parecem quase que incidentais a princípio, mas são cruciais para a maneira como a história progride. O andamento do romance é deliberado, permitindo que os leitores se vejam profundamente imersos na vida confinada do protagonista, e nos temas mais amplos de tempo e mudança, muito melhor explorados na medida em que o próprio Rostov literário está mais aberto a mudar e refletir sobre suas próprias circunstâncias de maneira alegre e bem-humorada.

De forma contrastante, a série de TV adapta o andamento para caber no formato episódico, focando mais em desenvolvimentos dinâmicos e visíveis para manter a audiência engajada. Mudanças nessa cadência são evidentes, já que a série condensa temporalidades e histórias e introduz conflitos e resoluções mais imediatos, visando as expectativas de uma audiência de televisão. Essa adaptação resulta em um ritmo bastante diferente daquele do livro, em busca de manter o público interessado através de uma mistura de drama, suspense e recompensas emocionais rápidas.

A estrutura narrativa, os temas explorados e o andamento da história significativamente influenciam o interesse e sobretudo as respostas emocionais da audiência. A série faz um esforço muito grande para adaptar a narrativa introspectiva e lentamente construída do livro em algo mais imediato e dramático, impactando a maneira como a história é percebida e se conecta com seu público. Enquanto a abordagem adotada teve sucesso em atingir intensidade visual e emocional, ela também mudou o tom original da narrativa, afetando a profundidade da experiência do consumidor em relação ao livro.

A adaptação também fez mudanças notáveis nos relacionamentos dos personagens para melhor atender às necessidades dramáticas do formato televisivo. O relacionamento do Conde Rostov com seu amigo Mishka, por exemplo, foi totalmente reimaginado, mostrando um rompimento de relações na juventude que diverge, em muito, da história do romance. De maneira semelhante, a engraçada e interessante amizade de Rostov com Óssip no livro se transformou em um relacionamento frio e tenso na tela, mais próximo de uma relação Jean Valjean – Javert que da divertida relação criada por Towles. Essas alterações permitiram muito mais drama e uma exploração mais ampla de falhas de personagem e temas históricos sombrios, mas também introduziram desafios na manutenção da essência original de amizade e esperança da narrativa.

No mesmo espírito de buscar mais oportunidades para drama, a série introduziu emoções mais expressivas e externas entre os personagens secundários quando comparados com os sutis monólogos internos do Conde no livro. Essa mudança é particularmente evidente na representação de Nina, cuja relação com Rostov muda de maneira dramática em relação ao livro. Na série, os sentimentos pró-stalinistas de Nina e a revolta de um Alexander mais conservador contra o idealismo juvenil de sua amiga causam uma ruptura entre ambos, um contrate visível com a representação com mais nuances do romance, refletindo alterações significativas nos arcos dos personagens.

Johnny Harris como Osip e Ewan McGregor como Conde Rostov em Um Cavalheiro em Moscou episódio 2.

Essas mudanças, é claro, alteram significativamente a maneira como a audiência percebe a história. Enquanto o leitor pode se encontrar imerso numa narrativa detalhada que se desenvolve lentamente, permitindo reflexões profundas, quem assiste à série vê uma interpretação mais visual e dinâmica, criada para atrair uma audiência maior e focando em manter o engajamento através de conflitos maiores e um andar mais rápido, mas com uma imersão mais rasa. O livro permite que o leitor se conecte profundamente com o mundo interior do Conde, oferecendo uma visão profunda de suas reflexões filosóficas e resiliência apropriadamente cavalheiresca. Em contraste, a série representa um Rostov que ainda tem muito a aprender e está constantemente criando problemas para si mesmo, e traz o foco da audiência para o suspense e os desafios enfrentados pelos personagens no lugar de suas contemplações internas.

As vantagens da sobriedade

Há uma coisa que, na opinião desta autora, a série tem de melhor a respeito do livro: a lógica por trás da decisão do Conde de escapar do Hotel. No original, o Conde percebe que há uma oportunidade para que Sofia – sua filha adotiva – escape da Rússia, e por isso planeja a própria fuga – já que se Sofia desaparecesse em Paris, onde estava em uma viagem oficial com a Orquestra Jovem de Moscou, da qual fazia parte, ele próprio seria punido.

É perfeitamente compreensível, mas ainda assim parece um pouco arriscado demais: Sofia precisa se vestir de menino e escapar do teatro para a embaixada americana sob os olhos de centenas de pessoas, enquanto Rostov deve roubar documentos de hóspedes e fugir do hotel no meio da noite, após uma confusão envolvendo os telefones do primeiro andar inteiro do Metropol. Tudo isso para que ele nunca mais possa ver sua filha – a grande alegria de sua vida – outra vez, e tenha de se contentar com a certeza de que ela chegou até seu contato na embaixada e, portanto, estava segura. Considerando que Sofia era feliz em Moscou, e que a vida que Alexander levava no hotel, apesar de pouco ortodoxa, era perfeitamente boa, parece, de fato, um risco muito grande a se tomar para uma recompensa, no mínimo, agridoce.

A série faz exatamente a mesma coisa. Porém – exatamente pelo lado mais sombrio que, em minha opinião, não fez quase nenhum favor à produção além deste – a decisão parece muito mais lógica, urgente e inevitável. Rostov vê as pessoas que ama, de uma por uma, serem destruídas pela nova Rússia.

O Príncipe Nikolai é assassinado a sangue frio, Nina desaparece na Sibéria durante o Holomodor, Mishka é mandado para um campo de trabalho forçado, a família de Óssip é morta e ele corre perigo, e o governo Kruschev está parecendo cada vez mais propenso a governar a Rússia com mão de ferro – muitas dessas coisas acontecem no livro, mas a série deixa infinitamente mais clara a ligação entre esses eventos e a decisão do Conde de que Sofia precisa, a qualquer custo, ser tirada da Rússia. Em determinado momento, Alexander vê os rostos de todas as pessoas que ele viu serem devoradas por seu país, culminando na imagem da filha tocando piano em uma casa que está pegando fogo e desmoronando. Ela grita por seu pai, chora e pede ajuda, e ele não pode salvá-la.

É por isso que Sofia precisa ser mandada embora. Mesmo que isso signifique correr riscos que podem, muito bem, acabar com todos mortos. Mesmo que isso signifique que Alexander jamais verá sua amada filha outra vez. Uma justificativa plausível e muito bem explicada para um dos maiores conflitos do livro, e que não fica tão clara assim na narrativa de Towles.

Uma produção encantadora, mas sombria

Um comentário quase unânime entre todos os que assistem à série são os elogios a produção: A meticulosa atenção aos detalhes são evidentes, sobretudo através de seu design de figurinos e cenários, que foram elogiados por sua beleza e autenticidade. O orçamento alocado para a produção permitiu a criação de uma estética belíssima, que aprimora significativamente a experiência.

O elenco é excelente, com McGregor muito bem no papel de Rostov e Mary Elizabeth Winsted, sua esposa, interpretando Anna Urbanova com perfeição. Além deles, se destacam Alexa Goodall com sua deliciosa interpretação da travessa Nina Kulikova, e as irmãs Beau e Billie Gadson dividindo maravilhosamente o papel de Sofia Rostov – com destaque para a atuação surpreendentemente excelente da pequena Billie. Jhonny Harris também está muito bem como Ossip Glebnikov, embora seu papel na TV tenha pouquíssimo do personagem do livro.

Além disso, a ambientação é maravilhosa – o próprio Ewan McGregor mencionou ser um dos sets de filmagem favoritos de sua carreira. Uma vez que a série se passa quase que inteiramente dentro do hotel, era preciso fazê-lo interessante, e a produção de Um Cavalheiro em Moscou foi brilhante nesse sentido, com um cenário bem feito, detalhista e encantador que combina perfeitamente com o espírito da série.

A adaptação utilizou várias localizações históricas ao redor da Inglaterra, transformando-as no vívido mundo da Rússia do início do século XX. Localizações notáveis incluem Bolton Town Hall, que foi utilizada como a praça Moscou, e Liverpool Town Hall, que apareceu em alguns dos flashbacks. Yorkshire também teve um papel importante, com seus cenários diversos utilizados em cenas distintas.

A abordagem do designer de produção, Victor Molero, para recriar o Hotel Metropol foi de tratá-lo como um personagem em si mesmo, construindo ambientes que refletem o passado aristocrático do Conde e sua jornada ao longo de três décadas. O design incluiu detalhes intrincados, como um banco especialmente criado para o lobby, simbolizando a espera e o testemunho de Rostov do desenvolvimento de sua própria vida.

É importante mencionar que há, em toda a produção, um ar sombrio que combina com a mudança tonal generalizada na história: Os cenários são lindos, porém escuros. As roupas são em tons ora neutros, hora fortes, mas quase nunca suaves ou delicados. A música é, com frequência, melancólica e sóbria.

Leia também: Tudo o que você precisa saber sobre as novas adaptações de O Conde de Monte Cristo

É possível que uma adaptação mais ortodoxa tivesse se beneficiado de um pouco mãos de luz e cor, mas a escolha é compreensível e contribui para a visão artística da série.  A utilização estratégica de elementos visuais e técnicas de filmagem tiveram um papel significativo em criar uma conexão entre a narrativa introspectiva do livro e a necessidade da série por dramatização externa, ainda que com uma marcada mudança tonal para uma representação temática mais sombria.

Figurinos e caracterização

Os figurinos são majoritariamente adequados à época – com a notável exceção de alguns dos vestidos de Anna, que são definitivamente muito risque para os anos 20 e 30, mesmo no que diz respeito a uma estrela de cinema – e muito bem feitos. Os figurinistas da série receberam alta aclamação crítica, notadamente por seus particularmente lindos e historicamente corretos modelos, que superaram os de muitas outras produções de época contemporâneas.

Dou aqui destaque à duas caracterizações em particular:  Primeiro, a de Anna mais velha – já nos anos 40 e 50 -, onde Mary Elizabeth Winstead estava belíssima e suas roupas tanto quanto. Depois, a de Sofia da linda Beau Gadson, que transitava com facilidade entre uniformes escolares e roupas de dia-a-dia que evidenciavam sua natureza como uma recatada adolescente da União Soviética da década de 50, e os deslumbrantes vestidos de noite que a personagem usava para seus recitais de piano, que a faziam parecer mais madura sem, contudo, abrir mão da delicadeza e feminilidade da personagem.

A escolha de cores para Sofia foi especialmente interessante – Gadson foi vestida quase que exclusivamente em tons de azul, cor que estava usando em todas as mais importantes cenas da trajetória de Sofia – por contrastar abertamente com aquelas usadas por Nina, sua mãe – a garota com predileção por amarelo. É uma maneira sutil, porém muito eficaz, de pontuar a diferença gritante de personalidade entre as duas meninas que tem, em momentos diferentes, papeis tão importantes na vida de Alexandre Rostov – Nina em seus primeiros anos de prisão, e Sofia nos últimos. A primeira, alegre, agitada, idealista e cheia de energia e propósito; a segunda delicada, tranquila, gentil e amável.

Uma trilha sonora eslava por Federico Jusid

Por fim, pode-se mencionar também a trilha sonora de “Um Cavalheiro em Moscou”, composta por Federico Jusid. A composição musical da série mistura habilidade instrumentos musicais tradicionais russos com orquestra clássica, enfatizando a profundidade emocional e o contexto histórico da narrativa. Suas peças, que incluem toques de “russianidade” sem, contudo, serem caricaturas da musicalidade eslava, combinam muito bem com a série de TV como um todo, capturando o tom mais sombrio que a adaptação resolveu injetar na história original.

Algumas das melhores composições incluem “The Revolution Devours It’s Children”, “Release”, “To War”, “Where Is Our Purpose Now?”, “A Requiem For The Count”, “Sofia” e “I’ve Been Involved For Thirty Years”. A trilha Sonora também inclui peças que combinam com momentos significativos da história, como o “Piano Concerto No. 1” de Tchaikovsky e o “Piano Concerto No. 2” de Rachmaninov, que são pivotais para refletir o estado emocional dos protagonistas e o milieu cultural da era.

Recepção do público e da crítica

A adaptação de “Um Cavalheiro em Moscou” recebeu reviews largamente positivas do público geral. Respostas entusiásticas enfatizam a habilidade da série em mostrar o charme e o sempre-presente terror da vida do Conde, com muitos elogiando a performance de McGregor como perfeita, e a série como uma experiência emocionante e visualmente linda. Entretanto, alguns membros da audiência expressaram insatisfação, particularmente com a falta de realismo histórico e étnico do elenco, mencionando que a inclusão de um grande número de atores negros e sul-asiáticos em um contexto onde eles, historicamente, não estariam, causou distração e diminuiu a autenticidade da representação.

As análises críticas apresentam um espectro de opiniões. Alguns críticos apreciam a série por seu estilo visual e seu tom, e de maneira geral são feitos muitos elogios à habilidade de McGregor no papel – sua performance está sendo, talvez, o ponto de maior aclamação da produção como um todo. Outros, porém, descrevem a série como exagerada e lenta, sugerindo que ela falha em realmente se conectar com os temas mais profundos e substanciais do livro. A abordagem dos elementos históricos e do desenvolvimento dos personagens, e particularmente a escolha da adaptação de priorizar drama no lugar da delicadeza narrativa, foi um ponto de contensão.

A série recebe elogios quase unânimes a respeito de sua apresentação estética e das performances excelentes de seus atores protagonistas. Ainda assim, recebe críticas pelos seus deslizes em relação à realidade histórica e à profundidade dos personagens quando comparados aos do livro. Essa divergência em recepções – tanto entre audiências quanto entre críticos – enfatiza os desafios de se adaptar um livro profundamente introspectivo e guiado por seus personagens para um formato televisivo.

Um conto de fadas sobre resiliência e um drama sobre o século XX

A adaptação de “Um Cavalheiro em Moscou” de sua forma literária original para uma adaptação para série de TV foi marcada pelos conflitos entre o respeito pelo material fonte e pela inevitável necessidade de alterações significativas na transição para o meio visual. Enquanto a série foi elogiada por sua narrativa emocionante, design excepcional e performances maravilhosas, ela diverge das explorações filosóficas profundas e do estudo de personagem cheio de sutileza, delicadeza e nuance que define o romance de Amor Towles.

Notavelmente, a transformação do Conde Rostov em uma personagem cuja profundidade é comprometida pela necessidade de conflitos externos e uma narrativa mais sombria evidenciam uma diferença fundamental em relação à história mais sofisticada, reflexiva e bem-humorada do livro. Uma pena, pois o grande charme de “Um Cavalheiro em Moscou” – e “Um Cavalheiro em Moscou” é, sem sombra de dúvidas, um livro que depende, e muito, de seu charme – está nesse protagonista formidável, que é diminuído para a TV.

Em conclusão, “Um Cavalheiro em Moscou” enquanto série televisiva se destaca por sua qualidade de produção e sua habilidade em capturar a essência visual do livro e de uma época passada, oferecendo aos espectadores uma experiência visual estimulante e esteticamente agradável. Além disso, quando vista por si mesma, sem comparações com o material original, é também uma série divertida, emocionante e, num geral, muito boa. Entretanto, ela falha em replicar a beleza introspectiva do romance e as sutilezas das dinâmicas entre os personagens, e particularmente em representar um Conde Rostov mais adaptável e realmente cavalheiresco.

A série, enquanto um esforço digno de trazer a visão de Towles para as telas, nos lembras dos desafios inerentes de preservar a alma introspectiva e filosófica do material original em uma adaptação. Convidamos os leitores a apreciar a série por suas muitas qualidades, mas mantemos a opinião de que a experiência oferecida pelo romance é única e insubstituível. E esperamos que, dentre todos os méritos dessa adaptação, o maior deles seja apresentar o brilhante romance de Towles a uma audiência ainda maior.

Related posts

Ambição, Poder e Destino: Anakin Skywalker, o Macbeth de Star Wars?

“Frozen”, arromanticidade e assexualidade: como Elsa se tornou um ícone da comunidade aro-ace

“Fernanda Young: Foge-me ao Controle” (2024): documentário transforma escritora em poesia