Coração Satânico, sucesso do cinema com Robert De Niro ganha uma reedição com tradução de Carla Madeira
A história é um pêndulo que guarda os melhores segredos para quem resolve mergulhar nela. No caso da literatura de William Hjortsberg, o que mais fascina é poder ser testemunha de um autor e uma obra que vão sendo descobertos. A história de Hjortsberg na literatura, por exemplo, é repleta de curiosidades: ele começou escrevendo obras que ele mesmo chama de “a essência máxima da tolice”, pois se voltavam mais para o absurdo de fazer rir do que do insólito que viria a seguir.
Eis que, furando a história da história, um dia surge a premissa em sua cabeça: “Era uma vez o diabo e ele contratou um detetive particular”. Desta ideia absurda, nasce um dos romances mais famosos de todos os tempos: Coração Satânico.
Coração Satânico, de William Hjortsberg, publicada no Brasil pela Darkside Books com tradução da também escritora Carla Madeira (Tudo é Rio e Véspera), conta a história de um nem tão famoso detetive chamado Harry Angel que é contratado para encontrar um músico famoso chamado Johnny, que havia sumido após a Segunda Guerra Mundial.
Segundo a história, ele havia voltado traumatizado dos campos de batalha e vivia quase em estado vegetativo, porém um tempo depois sumiu do hospital dos veteranos sem deixar rastros. Acontece que, na busca de descobrir esses rastros, Angel vai encontrar um bizarro submundo de ocultismo, vudu e alianças com o outro do lado.
Esta é a hora em que eu digo que a história é um verdadeiro pêndulo. Mas por que? Primeiro, porque Hjortsberg sabe dar ao livro uma estrutura perfeita entre literatura de terror e literatura noir. A forma de escrita nos dá a sensação de que, diante de um impasse, a história aparenta uma pretensa lentidão para acelerar de modo que temos a sensação de que é a gente que está correndo, mas não: é tudo programado. Nesse sentido, o autor soube como ninguém seguir seus mestres, Dashiell Hammett e Raymond Chandler.
É evidente que a estrutura soturna da literatura noir encaixa perfeitamente com a história, ou seja, ela nos aparenta cada vez mais contemporânea em termos formais. Uma literatura que já é quase feita para ser vista, que podemos observar enquanto lemos. Não à toa, a obra fez tanto sucesso em sua adaptação de 1987, dirigida por Alan Parker e que teve Mickey Rourke e Robert De Niro nos papeis principais. E também não é coincidência que a partir disso toda a obra de Hjortsberg foi revista e relida, trazendo uma segunda onda de sucesso.
Confira o trailer do filme aqui:
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Porém, existe um ponto que preciso destacar sobre a obra e que, nesse caso, a faz soar um tanto anacrônica para os nossos tempos: uma espécie de estigmatização e estereotipação de rituais de origem africana. Nesse caso, uma leitura completamente equivocada do povo haitiano da América Central, cuja colonização francesa fez uso desses elementos místicos justamente para subjugar esses povos. Diante disso, aparecem uma série de termos que hoje são considerados racistas e percepções dessas matrizes religiosas totalmente pautadas por uma burrice do cristão branco médio norte-americano.
Tudo isso, claro, é uma mistura de preconceitos do próprio autor, mas também um retrato crítico em que ele nos faz ver como reflete parte da população daquele país cujo sonho americano promete para muitos, entrega para poucos e explora a maioria.
Dito isso, também podemos colocar essas percepções na conta do próprio gênero noir que é, por si só, um ponto de vista sombrio da existência e que imagina que, por debaixo do mundo iluminado das relações, todo mundo esconde um lado sombrio, bruxo e amaldiçoado fascinante.
Para finalizar, conto que, diante desse pêndulo entre o fascínio da história e do gênero de uma literatura escrita com a precisão e o primor que é capaz de nos deixar reféns dela, e o retrato de uma sociedade cujo esgoto esconde mistérios que até Deus duvida, Coração Satânico é uma das melhores obras para se pensar a questão da identidade.
Nesse caso, tanto a perda quanto a busca da identidade são faces do mesmo horror: ser exatamente quem somos e nunca sermos aquilo que acreditamos. E na busca de outros, no fim, acabamos sempre por encontrar um pedaço de nós mesmos. E esse, talvez, é o grande terror da história da humanidade.
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