As 15 melhores citações de Meus desacontecimentos, de Eliane Brum

Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista. Trabalhou durante vários anos como repórter para o jornal Zero Hora e para a revista Época. Atualmente, escreve para o jornal El País e colabora para o jornal The Guardian. Na lista dos títulos publicados estão: A vida que ninguém vê (2006), O olho da rua (2008), Uma duas (2011) e A menina quebrada (2013). Possui mais de 40 prêmios, entre eles, o Prêmio Jabuti de Reportagem em 2007 e o Prêmio Açorianos em 2013.
Em 2014, pela Editora Leya, foi lançado o livro Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras. A obra autobiográfica revela um pouco da infância numa cidade do interior do Rio Grande do Sul e como a escrita teve um papel determinante na sua vida.

Confira as melhores citações da obra:

COMO CONTADORA DE HISTÓRIAS reais, a pergunta que me move é como cada um inventa uma vida. Como cada um cria sentido para os dias, quase nu e com tão pouco. Como cada um se arranca do silêncio para virar narrativa. Como cada um habita-se.

Lembranças não são fatos, mas as verdades que constituem aquele que lembra. Recordações são fragmentos de tempo. Com elas costuramos um corpo de palavras que nos permite sustentar uma vida. […] Esta é a minha memória. Dela eu sou aquela que nasce, mas também sou a parteira.

DESDE O INÍCIO O MUNDO doeu em mim. Dentro, mas também fora. Alguns creem que as memórias da primeira infância ou são boas ou não existem, temerosos de que até o mito da infância feliz lhes escape. São os que preferem não lembrar. Eu lembro muito, sempre lembrei. E ainda hoje há noites, muitas noites, em que acordo com o coração descompassado. Sempre vou temer o retorno da escuridão, que para mim é o mundo sem palavras.

Às vezes me perguntam o que aconteceria comigo se não existisse a palavra escrita. Eu respondo: teria me assassinado, consciente ou não de que estava me matando. É uma resposta dramática, e eu sou dramática. O que tento dizer é que, se não pudesse rasgar o papel com a caneta, ainda que numa tela digital, eu possivelmente rasgaria o meu corpo. E, em algum momento, o rasgaria demais.

Desde pequena eu tenho muita raiva – e quase nenhuma resignação. A reportagem me deu a chance de causar incêndios sem fogo e espernear contra as injustiças do mundo sem ir para a cadeia. Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar.

A palavra é o outro corpo que habito. Não sei se existe vida após a morte. Desconfio que não. Sei que para mim não existe vida fora da palavra escrita. Só sei ser – por escrito. No meu nome carrego o que sou e o que não sou, sustento o que busco e não alcanço, assim como o vazio entre as letras, o incapturável em mim. O indizível que também me constitui.

Aprendi ali que ninguém é substituível. Alguns se tornam substituíveis ao se deixar reduzir a apertador de parafusos da máquina do mundo. Alienam-se do seu mistério, esquecem-se de que cada um é arranjo único e irrepetível na vastidão do universo. Quando a alma estala fingem não saber de onde vem a dor. Então engolem a última droga da indústria farmacêutica para silenciar suas porções ainda vivas. Teriam mais chance se ousassem se apropriar de sua singularidade. E se tornassem o que são. Para se perder logo adiante e se buscar mais uma vez, já que ser é também a experiência de não ser.

Para mim, as notícias habitam os detalhes, às vezes empoeirados, do cotidiano. A maior parte das histórias reais que conto vem dessa grandeza do pequeno, da delicadeza que anima cada vida humana, mesmo nas horas brutas.

A palavra escrita me encarnou em um corpo onde eu podia viver. O corpo-letra. Ao fazer marcas no papel, com a ponta dura da caneta, entrei no território das possibilidades.

Pela palavra escrita eu tornava-me capaz de transcender o concreto, transformar impotência em potência. Fui salva pela palavra escrita quando comecei a ler – e (talvez) em definitivo quando escrevi. E – importante – quando fui lida.

Ser contadora de histórias reais é acolher a vida para transformá-la em narrativa da vida. É só como história contada que podemos existir. Por isso escolhi buscar os invisíveis, os sem voz, os esquecidos, os proscritos, os não contados, aqueles à margem da narrativa. Em cada um deles resgatava a mim mesma – me salvava da morte simbólica de uma vida não escrita.

O livro respirava como um corpo, o meu corpo. Encarnar-me em letras para mim não era metáfora. Quando me tornei repórter, sofria se alterassem o meu texto. Até hoje não suporto. Sou aberta a sugestões, mas quem escreve, com palavras minhas, sou eu. Em meus textos sou a autora de todas as vírgulas. As faltas e também os excessos me pertencem. Só assim sustento o frágil equilíbrio que me mantém na posse de mim mesma.

Lutei desde os primeiros dias em uma redação pelas minhas palavras. Nas muitas vezes em que meus textos foram mutilados, com mais frequência nos primeiros anos da minha vida de repórter, me encolhia no lugar mais protegido da casa em que morava no momento e ficava horas por lá até refazer a minha pele.

Não sou capaz de esconder sentimentos, o que faz de mim uma aleijada social. O que vivo escapa pelos meus olhos. Quando meus textos eram despersonalizados, sentia o corpo esburacado, surpreendia-me que não deixasse sangue atrás de meus passos. Precisava curar o invisível mais concreto de mim para poder entrar na redação no dia seguinte e recomeçar a brigar.

Aos poucos percebi que só poderia me colocar diante do outro, de todos os outros, como eu era. Quebrada. Com toda a integridade das minhas fraturas, das quais finalmente fiz um vitral.

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