Asilo ou casa de repouso: não importa o nome, o estigma é o mesmo. Local para pessoas no fim da vida, talvez abandonadas por seus familiares, algumas vezes maltratadas dentro dessas instituições. Um filme que se passa dentro delas não pode ter final feliz. E “A Memória do Cheiro das Coisas” de fato não tem. É um filme cru, que coloca o dedo em mais de uma ferida aberta pelo passado colonial português.
Arménio (José Martins), de 79 anos, é levado pelo filho para uma casa de repouso. Mal o rebento saiu, seu Arménio fez o alarme de incêndio disparar ao acender um cigarro. Percebendo o que causou o disparo, ele sacode os ombros e puxa a fumaça com ainda mais força, liberando-a na direção do detector.

Arménio é ex-combatente da guerra de independência de Angola, que ocorreu entre 1966 e 1975. Perguntado por uma médica se teve apoio psicológico em seu retorno a Portugal, responde que vai sobrevivendo e divide com ela uma de suas memórias impressionantes do conflito.
A primeira perda sentida é da lacônica e provavelmente sonâmbula Amélia, cujo chinelo Arménio estava consertando quando ouviu o som da ambulância. Dos amigos de longa data que vão visitá-lo, Arménio indaga sobre o funeral de outro amigo, ao que respondem “de nosso pessoal, já somos poucos”. A velhice é uma época de perdas: de pessoas, de referências, de vitalidade, de autonomia…
Para o enfermeiro brasileiro Jefferson (Robson Lemos), Arménio diz que o filho não faz nada sozinho, em contraponto ao filho de Jefferson, que o orgulhoso pai diz estar enorme e independente. Mas a grande sacada aqui é que mesmo Arménio não consegue mais fazer muitas coisas sozinho: quando esse diálogo acontece, ele está sendo higienizado por Jefferson. A velhice é uma regressão.

Um conflito se delineia quando Jefferson sai do emprego e quem passa a cuidar de Arménio é a enfermeira Hermínia (Mina Andala). Arménio e Hermínia: os nomes combinam, os gênios, não. Logo no primeiro contato, o idoso tenta agarrar a enfermeira, que reage com firmeza. Como vingança, ele aperta os braços até fazer hematomas, para dizer que ela o machucou.
Arménio não é como as senhorinhas espevitadas de “Do Jeito que Elas Querem / The Book Club” (2018) ou “80 for Brady: Quatro Amigas e uma Paixão” (2023). Também não faz o tipo idoso fofinho e sábio. Está mais próximo dos personagens do livro que virou série “Fim”, de Fernanda Torres: mal-humorado, teimoso, cheio de falhas e comportamentos execráveis.
Hermínia é negra, e divide um episódio de racismo velado que viveu: num jantar de ex-combatentes a que foi com o avô, ficavam lhe perguntando de onde era, porque não podia ser preta e portuguesa. Quem não perguntava olhava para ela como quem vê um animal exótico, com curiosidade.

Sobre a relação de Arménio com Hermínia, o diretor António Ferreira declara:
“Sua relação com o passado é complexa, especificamente com os negros, outrora ‘os inimigos’. Um homem que superou a violência da guerra, acostumado a ser independente, com toda a sua rudeza, se vê agora debilitado e em posição de vulnerabilidade nas mãos de uma mulher negra, tendo que lidar com seus preconceitos, tentando manter um equilíbrio entre sua autonomia e a necessidade de ser cuidado”
O que fez Arménio prosseguir foi a memória do cheiro das coisas. Fumante, porém asmático, é à sua derrocada que assistimos. A derrocada é inevitável, mas torcemos, alguns de nós rezamos, para que a nossa seja breve, indolor, sem humilhação. Mas para alguns, como foi para Arménio, a derrocada permite uma evolução, um fazer as pazes com o passado. Porque sempre é tempo de aprender e mudar — até mesmo no fim.
“A Memória do Cheiro das Coisas” chega aos cinemas em 30 de outubro pela Muiraquitã Filmes. Assista ao trailer:
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