Em julho de 2015, conheci Araraquara quando fui fazer uma prova final do curso de pós-graduação em Comunicação e Jornalismo. Em abril de 2024, conheci o jornalista Ignácio de Loyola Brandão, natural de Araraquara, mas ele no palco do Festival Literário de Poços de Caldas e eu a alguns metros de distância, na plateia, feliz ouvindo meu amigo, o escritor Chico Lopes, conversando com seu amigo Brandão. Ouvi o papo com satisfação e acreditei que já vinha com farta bagagem prévia para assistir ao documentário do filho do escritor sobre o pai ilustre, auspiciosamente intitulado “Não Sei Viver Sem Palavras”. Mas nele obtive muitas mais informações, que deram novo contorno ao meu conceito sobre o escritor.
O documentário começa com água jorrando e uma reflexão de Frei Betto: “o medo é a imaginação”, portanto, se jogue. Dos vídeos caseiros que se seguiram, só consegui sentir repulsa e indignação ao ver uma manobra de Kristeller ser executada durante uma cesariana.
Do menino que aprendeu a escolher palavras para suas redações como quem escolhe feijão para sua refeição, até o Imortal da Academia Brasileira de Letras, a distância é menor do que se pode imaginar. Sua retórica e habilidades de oratória vieram do pai, que era uma espécie de comunicador oficial da igreja que a família frequentava.

Tal qual os personagens do filme de estreia de Federico Fellini, “Os Boas-Vidas” (1953), o sonho do jovem Brandão e de todos os seus amigos era sair da bucólica Araraquara e ir para São Paulo. Mas havia um sonho maior: ser diretor de cinema, sonho rememorado e reforçado na mais recente coluna de Brandão para o jornal O Estado de São Paulo. Não aconteceu, ao invés disso virou repórter e só depois foi pensar em ser escritor, quando percebeu que o que lhe interessava não era o fato, era, justamente, a imaginação. Entre um momento e outro, uma grande honra: foi figurante em “O Pagador de Promessas” (1962).
Brandão viveu e enfrentou a ditadura, com destaque para sua tensa vivência da missa em memória de Vladimir Herzog, cujo brutal assassinato completou 50 anos em 2025. Tudo o que o jornalista escrevia passava pela censura que havia dentro da redação do jornal, chamada “censura pré-histórica”. Fez depois seu “documentário de um tempo tenebroso” com o visualmente e até gramaticalmente ousado romance “Zero”, obra que o lançou nacional e internacionalmente.
Leia também: 17 livros favoritos do escritor Ignácio de Loyola Brandão
Chegamos a outro momento complicado quando o escritor descobriu um aneurisma cerebral na década de 1990 e se submeteu a uma cirurgia arriscadíssima que, contudo, forneceu aos médicos um momento de poesia ao ser bem-sucedida.

A inspiração de um escritor é sempre de interesse público. A de Brandão é acima de tudo bem documentada, em caixas e envelopes de arquivos contendo recortes de jornal para pesquisa e fotos tiradas por ele mesmo, tudo devidamente organizado e catalogado. Outro tema de interesse é a expectativa dos autores em relação a seus livros, aqui exemplificado em como Brandão imaginou que tudo mudaria com aquele que considera seu melhor livro, “Dentes ao Sol”, mas cuja repercussão o desanimou, e o livro permanece entre os menos lidos e conhecidos de sua vasta obra.
Não esperava ver uma montagem da cena cultural dos anos 70 intercalada com cenas de repressão policial tudo ao som de “Conga, Conga, Conga”. Esperava encontrar, e de fato encontrei, pensamentos sobre a vida de escritor, como os episódios contados no parágrafo anterior, e pinceladas de uma trajetória que soma dezenas de livros publicados, em diversos gêneros. Encontrei também um elo cinematográfico entre pai, Ignácio, e filho, o diretor André Brandão, que sobre isso declara:
“Sinto que esse filme de fato também é um pouco dele. O fato de que ele sempre quis fazer um filme, mas nunca fez, e nesse filme, além de personagem, ele também filmou uma parte importante do material (o Super8), e o texto é inteiro dele, sejam as entrevistas, sejam os trechos de livros, faz com que esse filme seja também em parte dele. É um pouco uma simbiose, uma passagem de bastão, é o meu primeiro filme, uma releitura da vida e da obra dele partindo de textos e algumas imagens dele, mas com o meu ponto de vista. É algo sutil mas muito forte ao mesmo tempo, difícil explicar”.

O documentário começa com uma fala sobre a imaginação. Na palestra que ouvi de Brandão ficou muito forte em mim uma anedota. Ele fez o Ensino Médio Científico, na época um curso voltado para as Exatas, apenas porque a fila de inscrição para aquele curso estava menor e o adolescente Brandão estava com pressa. Penou durante anos. No seu exame final, teve que resolver uma equação cabeluda no quadro e inventou fórmulas e valores na tentativa de engambelar o professor. Impressionado com a cara de pau do jovem, o professor deu uma boa nota não para as contas que ele fez, mas “pela sua imaginação”. A imaginação foi o ganha-pão de Ignácio de Loyola Brandão. Driblando o medo e ficando só com a imaginação, seu filho André Brandão fez o documentário “Não Sei Viver Sem Palavras”: de certa forma, o sonho do pai de ser cineasta se concretizou com o filho. E tudo graças a ela: a imaginação.
Ajude a manter o Nota vivo! Contribua no Apoia.se!


