“Não me faz mentir pra você”: a nostalgia ácida de uma geração sem vocabulário emocional

O espetáculo teatral Não me faz mentir pra você nasce da vontade do diretor Christian Landi em revisitar a década de 90, sob o ponto de vista da juventude a caminho dos trinta anos, conhecida pela individualidade e uma abordagem mais flexível e liberal em relação a sexo, ao mesmo tempo em que a pandemia da AIDS assombrava e dizimava milhares de pessoas. Foi a geração marcada pela tecnologia, crescendo com a internet, computadores e outros dispositivos eletrônicos. A peça convida o público a mergulhar numa atmosfera emocional que os transporta para uma grande metrópole, acompanhando, como voyeurs, diferentes personagens inspirados em várias obras, trechos e cenas de dramaturgias expoentes dos anos 90, e que estão em busca de afeto para aplacar o vazio, cinismo e egoísmo que os consome, através de sexo, Ecstasy, junk food, prozac, álcool e música pop.

A dramaturgia de Não me faz mentir pra você, assinada por Christian Landi, constrói-se a partir de uma colagem de cenas e personagens inspirados em obras dos anos 90, criando inicialmente uma impressão de fragmentação que, progressivamente, se articula para pintar um panorama plural daquela década. Landi utiliza a estrutura de esquetes para iluminar questões urgentes da época — como a libertação feminina, o machismo, a epidemia de AIDS e a dificuldade de assumir a sexualidade — com um foco narrativo agudo nos sintomas do mal-estar social (suicídio, automutilação e depressão) em vez de explorar suas causas psicológicas profundas. Essa escolha reforça a representação de uma geração que carecia de vocabulário emocional para entender suas próprias angústias. No entanto, a prioridade conferida ao dinamismo e ao ritmo pulsante do espetáculo, embora eficaz em capturar a atmosfera caótica dos anos 90, acaba por sacrificar o desenvolvimento de vínculos emocionais mais profundos com os personagens, deixando o público mais na posição de voyeur do que de participante empático de suas jornadas.

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O elenco de doze atores de Não me faz mentir pra você apresenta uma qualidade heterogênea, mas coesa em seu propósito de dar vida ao mosaico de personagens da década de 90. Enquanto alguns intérpretes demonstram excelência técnica e uma imediata conexão com seus papéis, outros, embora consistentes e maduros em suas atuações, nem sempre encontram a adequação ideal aos seus tipos físicos. Dentre os destaques, Eduarda Andrade impressiona pela incorporação vocal precisa e uma presença cênica marcante desde sua primeira aparição, Luiza Kehdi constrói sua personagem com nuances progressivas, atingindo um ápice dramático convincente, Josi Costa cativa pela entrega visceral e momentos de genuína doçura, e Igor Montovani com uma interpretação complexa e cheia de camadas. Coletivamente, o grupo sustenta com energia a estrutura fragmentada de esquetes, conseguindo transmitir o vazio e a angústia daquela geração.

A direção de Christian Landi em Não me faz mentir pra você sobressai pela maneira inteligente e criativa com que transforma limitações técnicas em potência cênica, demonstrando um domínio do fazer teatral de guerrilha. Ao encenar em um espaço não convencional, Landi e Diana Klautau que assina o desenho de luz, superam a ausência de infraestrutura complexa com soluções astutas, como o uso de uma iluminação ambiente que, por ser intimista e pulsante, reforça a atmosfera emocional da década de 90 sem precisar de controles elaborados. Sua curadoria musical é um acerto certeiro, integrando-se perfeitamente ao espírito da época, enquanto a parceria com João Rostand nas coreografias acrescenta um frescor necessário, com danças de chão simples mas eficazes que se encaixam organicamente na narrativa. Landi conduz o elenco de doze atores com foco no dinamismo e no ritmo, priorizando a construção de um panorama social fragmentado e vibrante, ainda que essa opção estética, coerente com o tema, resulte em uma experiência mais voyeurística do que profundamente empática para o público.

Em suma, Não me faz mentir pra você é um espetáculo que merece ser visto precisamente pela sua ambição e pela forma corajosa como encapsula o espírito de uma era. Mais do que uma simples narrativa, a peça oferece uma experiência sensorial e histórica imersiva, transportando o público para os anos 90 com uma autenticidade rara, graças à sua trilha sonora precisa e à atmosfera visual pulsante. A opção por uma estrutura fragmentada, que pode limitar a profundidade individual, é também a sua maior virtude, pois ela cria um painel coletivo vibrante que retrata com fidelidade o caos, o medo da AIDS, a liberação sexual e o vazio existencial daquela juventude. A direção inventiva de Landi, que transforma limitações em potência, e a energia do elenco fazem do espetáculo uma aula de teatro de guerrilha e um documento visceral sobre uma geração definida pela contradição entre a conexão tecnológica e o desamparo emocional. Para quem viveu a época, é um mergulho nostálgico e crítico, para as gerações mais jovens, é uma janela essencial para compreender as raízes do nosso presente. É, portanto, um trabalho importante, não por oferecer respostas fáceis, mas por capturar de forma tão intensa os sintomas de um tempo que ainda ecoa fortemente hoje.

FICHA TÉCNICA:
Direção e dramaturgismo: Christian Landi
Elenco :Diana Klautau, Donato Caranassios, Eduarda Andrade, Giorgio Lucca, Gustavo Martini, Igor Montovani , Josi Costa, João Rostand, Luiza Kehdi, Pedro Montemurro, Robinson Rogério e Sofia Savietto.
Design de movimento: João Rostand
Design de iluminação: Diana Klautau
Consultoria de iluminação: Vini Hideki
Trilha sonora: Christian Landi
Assessoria de imprensa: Diego Ribeiro
Mídias sociais: João Rostand e Pedro Montemurro
Fotos de divulgação: Ícaro Oliveira
Identidade visual: Marcelo Alexander
Foto cartaz: Daianne Rigo e Casa Louvre Studio
Produção executiva: Christian Landi, Diana Klautau e João Rostand

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