“A velhice é uma indecência”, dizia meu avô, já idoso. Não sei de quem é a frase, talvez fosse de Benjamin Disraeli, que ele gostava tanto de citar. Mas a velhice reserva alguns prazeres para o homem, sim. Para meu avô, foram a aposentadoria, as palavras cruzadas e as partidas de futebol na televisão. Para Severino Cavalcanti, são tomar um uísque, comer feijoada direto da panela, cochilar com a cachorra Nina no colo. E, claro, ser imortalizado em película com o filme de afetos “Seu Cavalcanti”.
Mesmo sendo um péssimo motorista e aceitando todos os empréstimos que os funcionários do banco ofereciam, Seu Cavalcanti não era repreendido pela família. Assim, com seu jeito peculiar, participava dos filmes de seu neto, Leonardo Lacca, que acreditava que todos podiam atuar – até seu pouco à vontade avô, nunca intimidado pelas câmeras, mas com problemas para seguir as ordens do neto-diretor.
Seu Cavalcanti conta que suas filhas e seus netos nunca lhe deram desgosto, pois são todos empregados e formados, “não tem nenhum vagabundo”. Leonardo conta que, com o passar do tempo e como comumente acontece, a filha mais velha Tereza, mãe do cineasta, foi se tornando cada vez menos filha e mais mãe de seu próprio pai. Com a velhice, Severino e Leonardo viraram quase irmãos.

Há muitos motivos para sorrir com Seu Cavalcanti, mas a derrocada dos últimos anos de um ser humano é implacável. Ele fala muito bem, mas se confunde se são três ou quatro anos de mandato na comissão de ética da polícia, onde ainda trabalha. A saúde é de ferro, os exames de jovenzinho, mas o tempo não perdoa. Mais cedo ou mais tarde, virão lágrimas.
Alguns detalhes do fazer cinematográfico são mencionados e ensinados para quem não sabe, como o fato de ter de pagar licença para usar músicas nos filmes. Leonardo queria, na cena da dança de Seu Cavalcanti com a neta na formatura desta, colocar uma música de fundo de Dean Martin ou Luiz Gonzaga, mas eram muito caras, então ele conseguiu apenas comprar um “forró genérico” para a cena.
Leonardo conta que até se confunde com quando começou a fazer cinema e quando começou a filmar o avô, em 2002. Talvez sejam coisas intercambiáveis, talvez sejam a mesmíssima coisa. Afinal, Leonardo continua de certa forma filmando o avô, mesmo anos após a morte dele. Talvez lançar “Seu Cavalcanti” no circuito comercial de cinema seja o fechamento de ciclo para Leonardo finalmente se dedicar a outros projetos, sem se esquecer deste.

Misturando documentário com ficção – como nas cenas com Maeve Jinkings – “Seu Cavalcanti” tem entre seus produtores Kleber Mendonça Filho, que, como curador do Instituto Moreira Salles, parece ter desenvolvido um toque de Midas para boas produções. Leonardo Lacca trabalhou como diretor assistente de “Bacurau” e “O Agente Secreto”, e só tem elogios para os produtores associados Kleber, Emilie Lesclaux e Mannu Costa:
“Essas colaborações não apenas proporcionaram recursos para uma finalização de qualidade, mas também trouxeram uma riqueza de visão ao projeto”
Muitos cineastas filmaram temas que lhes eram caros – o primeiro exemplo que me vem à mente é Martin Scorsese. Isso é cinema de afetos. Mas há um tipo de cinema que ultrapassa essa barreira do “eu gosto” e entra nas mais íntimas relações pessoais do cineasta, que pode, como acontece aqui, filmar sua própria família e dela fazer uma potente obra cinematográfica, que emociona quem conviveu anos com Seu Cavalcanti e nos deixa agradecidos por, durante 78 minutos, termos convivido com ele também.
“Seu Cavalcanti” estreia em 11 de setembro nos cinemas. Confira o trailer:
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