Ana Marginal é espetáculo que transita pela obra e vida da poeta Ana Cristina Cesar, ícone da poesia marginal dos anos 70, a partir do conflito de três atrizes envolvidas pela complexidade e identificação das angústias de sua personagem.
Constantemente penso na dificuldade que é falar sobre grandes artistas, como Ana C. Qual a complexidade de montar uma história sobre essa escritora dos anos 70, e sua pluralidade? Partindo desse princípio, três atrizes propõem-se a realizar um estudo sobre a vida e a obra de Ana C., e é justamente aí que está a genialidade da peça.
A dramaturgia de Ana Marginal se destaca por sua abordagem não linear e profundamente reflexiva, mergulhando na complexidade da vida e da obra de Ana Cristina Cesar sem cair na armadilha da biografia convencional. Michelle Ferreira constrói um texto inteligente e fragmentado, em que três atrizes não interpretam Ana C., mas buscam desvendar suas múltiplas facetas através de suas palavras e angústias, evitando os clichês e explorando textos menos óbvios de sua produção. A escolha de omitir obras icônicas como Samba-canção em favor de uma investigação mais íntima e plural revela uma ousadia narrativa que desafia o espectador a enxergar Ana Cristina além do mito, numa encenação que é tanto homenagem quanto desconstrução poética.
As atrizes Bruna Brignol, Carol Gierwiatowski e Nataly Cavalcanti entregam performances visceralmente poéticas em Ana Marginal, mergulhando não numa representação literal de Ana Cristina César, mas numa investigação corpórea e emocional de sua obra, onde cada gesto, palavra e silêncio parece ecoar as fissuras e os fluxos da poeta. Com uma entrega que vai além da atuação, elas desnudam camadas de afeto e angústia, sustentadas por uma coreografia precisa que transforma o palco em espaço de ritual, onde a linguagem se faz corpo e a biografia se dissolve em arte. Nataly Cavalcanti, também idealizadora do projeto, imprime uma devoção palpável, enquanto o trio, em sintonia quase musical, constrói uma experiência teatral que não decifra Ana C., mas busca reinventá-la em movimento, respiração e voz.
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O trabalho técnico de Ana Marginal é uma camada essencial da peça, cenografia, iluminação e recursos audiovisuais se articulam para criar um espaço tão plural quanto a própria Ana Cristina Cesar. A cenografia de Bruna Brignol e Nelson Baskerville opera em múltiplas linguagens, transformando objetos em signos versáteis que, assim como a poesia de Ana C., resistem a uma única interpretação.
Os elementos audiovisuais não são meros suportes, mas extensões da palavra poética, projetando versos e depoimentos como ecos no espaço. A iluminação de Lui Seixas, minimalista e envolta em tons quentes, desenha ambientes que remetem à marginalidade dos anos 70 sem cair no óbvio, criando um jogo de sombras e focos que dialoga com a fragmentação da dramaturgia. Juntos, esses elementos técnicos não apenas ambientam a cena, mas se tornam parte da investigação poética, materializando no palco a complexidade e a multiplicidade que definem Ana C.
A direção de Nelson Baskerville em Ana Marginal se destaca por sua capacidade de sintetizar uma pesquisa densa em uma linguagem cênica coesa e pulsante, equilibrando a fragmentação poética de Ana Cristina Cesar com uma narrativa teatral orgânica. Com um olhar sensível e preciso, Baskerville conduz o espetáculo para além da biografia linear, optando por uma encenação que privilegia o processo investigativo como parte fundamental da dramaturgia, evidenciando que a peça é, antes de tudo, um encontro íntimo com a obra da poeta, não sua representação.
Baskerville evita didatismos e permite que o público vivencie, em vez de apenas assistir, o universo complexo e marginal da poeta. Um feito que consolida Ana Marginal não como uma peça sobre Ana Cristina Cesar, mas como um diálogo aberto e visceral com seu legado.
Ana Marginal consolida-se como uma experiência teatral necessária e potente, que transcende a mera representação biográfica para se tornar um encontro vivo com a essência da obra de Ana Cristina Cesar. Por meio de uma dramaturgia fragmentada e corajosa, performances que transformam palavra em corpo, e uma direção que harmoniza pesquisa e poesia cênica, o espetáculo não tenta explicar ou reduzir Ana C., mas sim recriar seu universo plural em camadas sensoriais e intelectuais.
A opção por evitar os lugares-comuns de sua obra, somada a uma cenografia e iluminação que dialogam organicamente com sua poética marginal, resulta num trabalho que homenageia a poeta justamente por não tentar domesticá-la. Mais do que um tributo, Ana Marginal é uma reverberação contemporânea do pensamento de Ana Cristina Cesar, um espetáculo que, como a própria poesia marginal, desafia formatos e convida o espectador a uma relação ativa com a cena, provando que a melhor maneira de celebrar um artista é mantendo sua obra viva, inquieta e, acima de tudo, livre.
Essa crítica foi escrita em colaboração com Michèle Duarte
Ficha Técnica:
Idealização: Nataly Cavalcanti
Dramaturga: Michelle Ferreira
Direção: Nelson Baskerville
Diretora Assistente: Anna Zêpa
Atrizes: Bruna Brignol, Carol Gierwiatowski e Nataly Cavalcanti
Concepção Cenográfica: Bruna Brignol e Nelson Baskerville
Figurino: Marichilene Artisevskis
Iluminação: Lui Seixas
Trilha Sonora: Nelson Baskerville
Criação e montagem dos vídeos: João Paulo Melo
Consultoria em Vídeo: André Grynwask
Vídeo Heloísa Teixeira: Anna Zêpa
Direção de Movimento: Débora Veneziani
Preparação Vocal: Alessandra Lyra (Cor & Voz)
Cenotecnia: Casa Malagueta
Operação de Som: Gabriel Müller
Operação de Luz: Paula Selva
Operação de Vídeo: Tarcila Rigo
Operação de Letreiro: Iza Marie Miceli
Contrarregra: Victoria Aben-Athar
Arte gráfica: Bruna Brignol
Fotos de divulgação: Bruna Castanheira e Jennifer Glass
Registro em fotos e vídeos: João Paulo Melo e Marcos Floriano
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto | Márcia Marques
Assistente de Produção: Gabriel Müller
Diretora de Produção: Iza Marie Miceli