Em “Macacos”, Clayton Nascimento encena a imensa estrutura racista por trás do termo.

Somente luz e um corpo. Essa cenografia esvaziada de “Macacos”, em cartaz no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, vai desenterrar o texto do espetáculo no palco como nenhum outro elemento poderia fazê-lo. A peça é dividida em episódios que investigam como os negros passaram a ser definidos ofensivamente pelo nome de um animal. Mas até a derradeira explicação, Clayton Nascimento – protagonista, diretor e dramaturgo do monólogo – expõe as violências a que os afrodescendetes estiveram sujeitos durante séculos de história. 

No primeiro episódio, conhecemos Eduardo, um garoto de oito anos, morto na porta de casa por dois policiais militares. Para a defesa, os PM’s agiram em legítima defesa. Se não fosse a persistência da mãe para encontrar mais de 40 vídeos que comprovam a inocência do filho, o caso ainda estaria “desovado” nas valas da Justiça brasileira. Clayton também leva ao tablado Mariele Franco, Amarildo, Claudia Silva Ferreira, a mulher arrastada por 350 metros por uma viatura, em 2014, no Rio, e Genivaldo Santos de Jesus, asfixiado no porta-malas de uma camionete da PRF. 

(Crédito: Folha de S.Paulo)

Essas notícias servem a um jogo metalinguístico, já que a cada noite, Clayton apresenta ao público uma realidade tão cruel que até parece roteirizada. Inclusive, foi após brincar em um tiroteio que a mãe do artista ouviu: “se ele faz isso, pode ser ator. Leva ele pro teatro!”

O esforço do ator para entrar na Universidade de São Paulo e na Escola de Arte Dramática ilustra muito bem como a falta de acesso às instituições foi moldada durante anos. Nesse ponto, portanto, o artista inclui sua pesquisa para criação do espetáculo e sua formação à própria montagem, materializando o discurso para a plateia e introduzindo uma aura acadêmica importante para uma grande cena: “Episódio 7: uma aula que você não teve”. 

Nas religiões afro-brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda, Exu Sete Encruzilhadas é reverenciado como o guardião dos lugares onde decisões cruciais são tomadas, é o vigilante dos caminhos abertos ou fechados. Embora a peça não se direcione para evocar tais elementos, chama atenção o peso dessa simbologia justamente no episódio destinado à educação e segurança pública do país, que desde a proclamação da República foi feita para excluir e violentar os ex-escravizados e a cultura da população negra. O caminho já nasceu trancado. 

Em cena, atuando menos como um “professor” e mais como um guardião, Clayton desfolha a história escrita sobre o corpo negro, sobre pés, mãos e cabeças que trabalharam até morrer sem direito a nada. Mas sua “aula”, que pode ser de geografia, história ou literatura, ganha alta voltagem devido a outra matéria: o teatro. 

Desde a primeira cena, é anunciado como a peça vai terminar. O cenário de “Macacos” não está vazio. De short e sem camisa, Clayton demonstra com o próprio corpo que a negritude foi apagada – e recontada – a partir da pele. Se nunca jogam luz nos fatos relacionados a isso, é a dramaturgia que está colocando em cena os corpos de Eduardos, Marielles, Cláudias e Genivaldos. A movimentação intensa faz o ator pingar de suor do começo ao fim e funciona como um elemento cênico genial: em vez de lágrimas, cada palavra dita sobre essa tragédia é um trabalho exaustivo. Boa parte da cultura negra foi criada em meio ao trabalho nos campos. Daí, o teatro de Clayton Nascimento é braçal para empurrar muitas questões para fora do palco. Até quando um negro vai suar de tanto gritar aquilo que deveria ser óbvio? Até quando o trabalho será pouco remunerado e a fuga, uma condição perene de sobrevivência? Até quando uma mãe vai peregrinar entre instituições de Justiça para mostrar que seu filho de 8 anos não é uma ameaça? 

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A dramaturgia e a direção engatilham as perguntas sem que se perca intensidade. Há uma história sendo contada, há personagens sendo representados e um jogo teatral a questionar tanto o ator quanto o público. Por exemplo, depois da “aula”, o último episódio é descrito como um “recadinho”. 

Emulando ovelhas, Clayton encena o comportamento de rebanho visto quando um negro é xingado de macaco. Porém, em um Brasil dominado por movimentos conectados às ideologias conservadoras-cristãs, a leitura ganha potência. O racismo é parte de uma doutrina, de uma tradição europeia de colonização e parte da estrutura elitista de qualquer época. O evangelho está sendo pregado nos campos de futebol, na Câmara, Senado e nas ruas. Então, é preciso encontrar a animalidade da revolução. A montagem vai mais longe e aborda o modo como os “macacos” estão se comportando como ovelhas obedientes aos seus pastores.

É por isso que ao longo de 2h45 (que passam voando, é preciso destacar) o monólogo se impõe como um documento cênico-histórico. Mais do que só liberar as feras, “Macacos” busca apontar a quem pertencem às jaulas. 

Ficha técnica e artística:
Interpretação, Direção e Dramaturgia: Clayton Nascimento
Direção Técnica e Iluminação: Danielle Meireles
Direção de Movimento: Aninha Miranda Spier
Operação de Luz: Cyntia Monteiro/Lucio Bragança Junior
Participação Especial: Terezinha de Jesus
Produção: Cia do Sal | Alex Júnior
Distribuição: Cia do Sal
Tempo de duração: 180 minutos

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