“Quando a Lua Sangra”, de Andreia Fernandes: ouvindo os encantados de nossa ancestralidade

O que pode a literatura? Até onde pode a literatura? Essas podem ser boas perguntas pra gente fazer na tentativa de descobrir a potência de um livro. Há livros que orbitam a nossa volta e nos contam coisas do nosso entorno e há livros que vasculham os horizontes em busca de novos traçados, novas geografias. Quando a Lua Sangra, de Andreia Fernandes, me parece, é dessas obras que estão no segundo grupo e que empurram nosso pensamento para frente.

Quando a Lua Sangra é uma obra arrojada que mistura memória e ancestralidade, defesa dos povos originários e das nossas reservas naturais, da possibilidade de uma história viva, mantida oralmente na troca entre pessoas e, ainda assim, a possibilidade de que nossa existência seja sempre mais do que só isto que nossos olhos veem. Neste romance, Andreia Fernandes parece apostar nos mistérios. Ainda que sem nome ou sem rumo, o mundo de Andreia é um componente repleto de mágica, um pouco à la Gabriel García Marquez, um pouco à la nossas narrativas indígenas tradicionais, como a dos Tupinambás.

Bom, mas vamos contar um pouco do enredo do livro: uma mulher jovem retorna a um casarão de sua infância, do qual tem diversas memórias truncadas. Não sabe se foi feliz, não sabe se foi triste, não sabe exatamente o que se passou. Tido como um lugar um pouco sagrado e um pouco amaldiçoado, ela parece retornar para prestar contas com o seu passado. E o que vamos descobrindo é quase como a história de toda exploração ruralista de nossas reservas indígenas.

Sua família era composta por fazendeiros e políticos influentes que possuíam uma relação no mínimo complexa com a aldeia indígena que ficava do outro lado do rio da pequena cidade onde moravam. Ela, repleta de privilégios, um dia, entra em contato com um rapaz dessa aldeia e passa a conhecer a vida para além de sua cultura urbana, do casarão e da casa grande e vai descobrindo nos rios e nas matas este lugar mágico, de celebração de toda existência viva.

Diante deste impasse de uma memória registrada de seu passado e necessidade de uma reconstrução, ela percebe que o mundo que se mostrava em seus olhos era feito de muitas ausências:

Tem que saber escutar (…) Ou eles te comem. (…) Entre o planalto e a floresta é urgente saber de ausências. O nada carece de direção. Procurar rumo é arriscar perder o barco e juízo. Então, é pedir licença aos encantados, deixar-se nas imensidões de toda, na linguagem dos ribeirinhos.

Ela opta, então, por ouvir os “encantados”, mas descobre que esse aprendizado milenar é completamente diferente das memórias do seu casarão. Ali, tudo era vivo, clamava e gritava. Restava a ela um aprendizado:

“(…) quantas vezes, bastava a floresta cismar e todo meu aprendizado ia para o brejo. Não se compreende culturas milenares em uma vida. Talvez, em séculos.”

Este mundo de aprendizado das matas e dos rios foi traçado, então, ao lado de duas figuras masculinas, Daniel e Ed. Mas, enquanto acompanha esses dois mundos, a jovem vai precisar construir um mosaico de uma estrutura social em que, ao que parece, todos, inclusive ela, fazem parte de uma engrenagem.

E se a natureza falava (e muito) pela potência, o planalto falava também pelas opressões: o dono do bar, o delegado de polícia, os caixeiros viajantes, os bêbados – todos, de alguma forma, haviam sido atravessados pela relação entre exploração dos recursos naturais na construção daquele espaço urbano.

O romance, então, vai revelando sua própria história com o surgimento de uma outra forma de contar histórias. As mortes de pessoas próximas ganham outras narrativas. As histórias que assombraram sua infância por serem mágicas assombram, agora, por serem terríveis. E essa história vai ser desvelada num bailado sofrido e corajoso:

“Quando a valentia escapa, a gente dança com o medo, a luta vira dança, a dança vira luta. De noite, vira vagalume, enxergar os brilhos na escuridão.No dia, divisar as trevas escondidas nas luzes enganosas.”

Sobre a linguagem do romance, não é à toa que Andreia Fernandes, uma escritora de coragem infinda, tenha ganhado o Prêmio Carolina de Jesus. É que ela precisou encarar diversos fantasmas para galgar essa obra: uma linguagem que nos permitisse ver o universo de uma aldeia indígena, a capacidade de compor um romance altamente realista, mas com pitadas de fantástico, uma obra nacional que baila com uma infinitude de referências nas epígrafes de cada capítulo e, por fim, o próprio jogo de sua linguagem no interior de uma literatura regionalista brasileira que já é tão rica.

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Escritora Andreia Fernandes, vencedora do Prêmio Carolina de Jesus 2023

Achar-se nesse meio poderia ser perigoso e o campo é lamacento e espinhoso, porém, com muitas virtudes, Andreia trouxe para dança os nomes de Guimarães Rosa, Cornélio Pena, Manoel de Barros, dentre os clássicos, e Daniel Munduruku, Ailton Krenak e Luis Antonio Simas, entre os contemporâneos.

E o melhor: tudo isso sem parecer um pastiche deles e, ao mesmo tempo, sem tentar fingir que não existem. Neste romance cuja lua sangra, Andreia escreve COM suas referências, o que torna um romance também uma nova referência sobre o tema.

E se a natureza foi uma fonte infinita de riquezas para a linguagem de Andreia Fernandes, já a nossa civilização traz consigo um capítulo sombrio de nossa história. Como exemplo, fica uma sabedoria que vem da aldeia:

“A aldeia não é só moradia, lugar de cultivo, de reunião. O espaço físico é também sagrado. É onde descansam os antepassados. Adianta ficar vivo, sem lugar no mundo?”

Para saber mais sobre a obra, acesse o site da editora aqui! E para adquirir um exemplar, envie um email para a autora: andreiafernandes.escritora@gmail.com

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