“Sua Majestade, o Elefante”, de Saadallah Wannous: o que fazer depois da destruição de um povo?

Depois de um tempo estou voltando a ler peças de teatro dos lugares mais distintos do mundo e tentando trazer um pouco do que se faz em dramaturgia por aí. Esta semana, entrei em contato com a obra do escritor Saadallah Wannous, um dos maiores dramaturgos da Síria, por conta da obra de sua filha Dima Wannus que foi publicada no Brasil pela Editora Tabla.

Saadallah foi um dos mais engajados artistas em defesa dos árabes ali na década de 60, 70, principalmente depois da derrota árabe no conflito de 1967 contra Israel em que, novamente, Palestinos foram expulsos de sua terra e, agora, também assassinados em outros territórios junto com outros países como o Líbano.

Saadallah Wannous

Após este momento, Saadalah fez surgir o que se passou a chamar de “teatro político árabe” que trouxe um novo nível de consciência para a classe artística, principalmente na comunicação com as massas. Em seguida, em 1969, Wannous cria um Festival Árabe de Artes Teatrais realizado em Damasco e que reune diversos dramaturgos de todo o mundo árabe. Neste festival, apresentou o seu novo projeto: um “teatro da politização” para substituir o tradicional “teatro político”. O objetivo do festival era que o teatro desempenhasse um papel mais ativo no processo de mudança social e política. É deste contexto que nasce a peça que li “Your Majesty, the Elephant” (Sua Majestade, o Elefante).

“Do nascimento à morte, tudo o que fazemos é esperar para sermos libertados. A paciência é pobreza.” Zakariyya

Sua Majestade o Elefante é um espetáculo com uma narrativa bastante curiosa: uma criança é esmagada por um elefante do rei que circula livre pela cidade. Entre choros e indignações, homens e mulheres descrevem nas minúcias o corpo esmagado desta criança, contando das injustiças que aquilo vinha causando, das mortes que já havia causando, sem deixar de revelar, aos detalhes, o pouco que havia restado do corpinho daquela criança para que fosse enterrado por sua mãe.

Assim, reunidas em suas dores, a população toma uma decisão e resolve bater na porta do rei para pedir para que o elefante permaneça preso. As personagens, que são muitas, como se formassem uma massa coletiva, são quase todas tratadas sem nomes, como “homem 1”, “homem 2”, “mulher”, “menina”, exceto uma que passa a se destacar como líder do grupo, Zakariyya.

Trecho do espetáculo Sua Majestade, o Elefante

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“Você pode ter mais medo do que viver em constante medo, pelo bem de sua vida, de seu filho ou de suas posses?” Zakariyya

O espetáculo, então, trata justamente dessa organização popular em torno do desejo de deixar de ver pessoas mortas pelo elefante do rei. Entretanto, é desta desorganização popular inicial e das múltiplas vozes dispersas que buscam se fazer ouvir, que Saadallah pretende mostrar a importante da “politização popular” em torno de suas lutas. Para Saadallah, no entanto, esta saída não é necessariamente simples: no fim do espetáculo, ainda que diante do rei, da suntuosidade do palácio e das burocracias, as pessoas travam seus ímpetos e não conseguem manifestar seu desejo ou, para evitar spoiler, apresentam outra ideia que não havia sequer sido cogitada anteriormente.

Em termos estruturais, Sua Majestade o Elefante tem uma forma bastante inovadora no jogo entre tradição, modernidade e teatro político. A peça é composta de pequenos quadros, ou cenas, em que personagens anônimas se manifestam quase que livremente em ações que são mais ou menos concentradas em centros de diálogos. Assim, como uma espécie de távola redonda, um coro de vozes vai compondo essa narrativa que, apesar de sem personagens claros, avança com sua história. Ao fim, um efeito brechtiano em que essas figuras falam como atores se afastam para pensar o fim dado pelos personagens, deixando-nos a pergunta: Agora que eles fizeram isso, vamos nós fazermos igual? Veja:

Esta é uma história
E nós somos atores.
Fizemos isso para você aprender com isso.
Agora você sabe por que os elefantes existem?
Agora você sabe por que os elefantes se multiplicam?
No entanto, nossas vidas estão apenas começando.
Quando os elefantes se multiplicam, outra história começa.
Uma história sangrenta e violenta.
Contaremos essa história outra noite.

Leitura feita pela tradução para o inglês diretamente do árabe de Andrew Leber

Veja um trecho do espetáculo baseado na obra de Saadallah Wannous

Sobre o Teatro do Mundo:

O projeto Teatro do Mundo é um mergulho no gênero teatral em busca de dramaturgias escritas (e nem sempre publicadas) ao redor do mundo. Todos as vezes eu sorteio um país, procuro uma peça dele e escrevo sobre ela. Sejam bem-vindos!

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